Marina Manda Lembranças H ora de almoço. A jovem mulher, que havia trabalhado intensamente a semana toda, tinha uma brecha. Pensou n...

Marina Manda Lembranças
Havia mesa vaga na varanda. Preparou-se para a merecida pausa de paz e relax, nem tirou o celular da bolsa. Mas antes mesmo da comida chegar, o olhar daquele homem pousou nela como um besouro ou um inseto ameaçador que não se pode afastar com um gesto da mão. A paz que mal havia começado, foi se desfazendo pelas bordas.
Tratou de olhar para outra direção ou manter o rosto abaixado sobre o prato, ficasse evidente que não estava interessada. O homem, porém, não sabia ou não queria ler atitudes, continuava com o olhar grudado nela. Podia percebe-lo mesmo sem ver, olhar rêmora, que não a largava. E assim foi durante toda a refeição, ela sentindo-se acossada , ele sem desistir.
Afinal, pagou a conta , levantou-se, e já estava quase saindo quando seu ressentimento lhe impôs outra direção. Deu meia volta, parou junto à mesa em que o homem almoçava com alguns amigos, e o interpelou.
— Você tá olhando o que?!
— Eu?! Olhando?! Tou olhando nada não, minha filha.
— Tá olhando sim!! Tá me olhando o tempo todo desde que cheguei.
— Eu tou olhando o que?! Nem sei quando você chegou. Sabe qual é o seu problema? Você é maluca! Devia procurar um psiquiatra.
— Sou maluca não. Mas tá bom, você diz que não estava me olhando. Vou te dizer então como eu me senti, te mostrar o meu ponto de vista.
E ela contou como havia procurado o restaurante em busca de sossego e comida, e como o olhar insistente dele havia estragado ambas as coisas, esse olhar ávido de caçador que não sabe distinguir a caça e acha que qualquer uma serve. Ela disse que havia dado todos os sinais possíveis do seu desinteresse, e mais, do seu desconforto. Que uma mulher tem o direito de sentar para comer num restaurante sem que isso signifique que está disponível. E que ela só queria ter sido deixada em paz.
Os amigos dele ouvindo, já com um meio sorriso, prontos para o deboche que fatalmente aconteceria depois que ela se fosse.
Ele ainda tentou uma cartada tão grosseira quanto o olhar:
— Você é de onde, hein?
— Sou nascida e criada aqui mesmo, em Ipanema.
— Duvido!, grossa desse jeito!
— Grossa eu?! por que?
— Porque está falando com um homem na rua.
Ela pensou de repente que eram argumentos antigos demais para a sua cabeça. Nada a ver. Deu meia volta e saiu. Mas levava um travo na boca, e a alma pisoteada.
Tinha dado só alguns passos quando ouviu o primeiro bater de palmas. Surpresa, olhou para trás. E viu que, de outra mesa do restaurante, um grupo de jovens, uma galerinha simpática, aplaudia a sua atitude. Sorriu para eles e para si mesma, os aplausos repunham a alma no lugar.
Esse fato aconteceu com minha filha Alessandra. E é bem ilustrativo da razão que impediu o Brasil de realizar o item “igualdade de gênero” estabelecido em 2000 pela ONU entre os oito Objetivos do Milênio. O prazo para os países completarem as oito metas de desenvolvimento socioeconômico esgotou-se ao término do ano passado, mas aqui os avanços nas questões de gêneros estão “travados”, como diz minha querida amiga, a professora Hildete Pereira de Melo. Ela, certamente, saberia elencar todos os elementos que estão puxando esse freio de mão. Eu digo apenas que a trava mais difícil de vencer está na base, nessa nossa mentalidade medieval que só vai mudar, talvez, quando a galerinha acabar de crescer.