Marina Manda Lembranças A s sete grandes caixas de madeira ventiladas ao alto por orifícios do tamanho de uma moeda foram colocada...
Marina Manda Lembranças
Pedaços de carne e frango foram espalhados, isca benfazeja destinada a conduzir os lobos até os primeiros arbustos e dali à plena liberdade. A equipe de veterinários, biólogos, cinegrafistas e, certamente, algum vigilante burocrata, estava emocionada, tensa. As portas das caixas foram abertas. Sete focinhos prateados despontaram. Sem saber que aquela operação toda era para o seu bem, os lobos mantinham-se na defensiva, hesitavam diante do espaço à sua frente. Depois o olfato pode mais que a prudência, o cheiro da carne havia chegado. E lá se foram eles, a cabeça ainda baixa a princípio, pronta ao ataque, e logo erguida, carne entre os dentes, lobos livres na natureza. Um parque nacional francês acabava de receber sete preciosidades.
A França tem hoje somente 250 lobos. E assim mesmo, porque a espécie emigrou da Itália em 1992, sem respeitar fronteiras. Fosse só pelos franceses, estariam exterminados como uma praga. Os últimos foram mortos em 1920.
Por que meu interesse em lobos, neste país que não os tem? Porque as crianças brasileiras, mesmo as muitíssimas que nunca viram um lobo em pessoa e as que não sabem o que é um lobo guará, conhecem muito bem esse devorador de avós e de meninas de capuz vermelho. Não só o conhecem, como é uma das suas personagens favoritas. Certamente, gostam muito mais dele do que da avó, da menina, e de toda ovelha que apareça - qualquer adulto que tenha filhos ou que lide com crianças conhece a alegria dos pequenos quando o lobo entra em cena, alegria tanto maior quanto mais o lobo é descrito como "feroz".
Recentemente, tendo sido convidada para fazer uma palestra em um congresso de literatura infanto-juvenil, me perguntei o porque dessa simpatia tão oposta ao sentimento que levou os adultos a quase deletar os lobos da face da terra. O lobo de que as crianças gostam não é o mesmo que ameaça os rebanhos e inquieta os criadores, é um lobo simbólico que representa a natureza selvagem, o desejo, a liberdade, e uma ferocidade indispensável. E porque as crianças "recebem"o lobo ficcional no mesmo período em que seu lobo interior está sendo grandemente reprimido pelo processo educativo, se identificam com ele.
Não por acaso Max, a personagem criada por Maurice Sendak no livro "Onde vivem os monstros", incorpora seu lado selvagem no momento em que veste a fantasia de lobo. A partir daí, e do castigo imposto para domesticá-lo — ele terá que ficar no quarto, sem jantar —, Max empreende uma navegação imaginária , alcançando uma ilha onde, assim como o macho dominante submete a matilha, dominará seres ferozes e se tornará seu rei.
Em Paris, no ano passado, criadores de ovelhas desfilaram com seus rebanhos diante da torre Eiffel, exigindo do governo licença para matar os lobos. Mas esbarraram na Convenção de Berne que, em 1979, estabeleceu que os grandes predadores europeus são espécies protegidas.
Enquanto isso, contrariando o desejo dos criadores, sete lobos brancos se apossam da reserva francesa e se preparam para a reprodução.