Marina Manda Lembranças C ascais — Aqui estou, olhando pela janela um mar português tão igual àquele que vejo da minha janela no Rio...
Marina Manda Lembranças
Ainda não estamos nas mesas redondas teóricas, mas as idas às escolas começaram no primeiro dia. Fui ontem, com Affonso, a uma escola pública da área de Alvide.
Em Portugal — para nossa extrema vergonha — estuda-se em horário integral desde o início, e o início é a creche. As crianças ficam na escola até as 5 da tarde, almoçam, têm aulas de música e arte, são comportadíssimas.
Estivemos com dois grupos diferentes, capitaneados pela professora Vera, com quem eu já havia estado há muitos anos no encontro de contadores de histórias em Beja, uma apaixonada por livros . Havia crianças dos 4 anos aos 13, e todas demonstravam idêntico empenho. Silêncio e atenção.
Um pequeno filósofo de 8 anos nos perguntou: ”Qual é o sentido da vossa vida?”. Convenhamos, não é o mesmo que perguntar o nome das nossas filhas ou quanto tempo se leva para escrever um livro, coisas que as crianças sempre querem saber nas visitas às escolas. Esse menino queria o caroço, o cerne de todas as questões, o sentido da vida. Hoje, pensando melhor, creio que deveria ter respondido que a vida em si não tem sentido, e que a nós cabe dar-lhe um. Mas não tenho certeza de que um gato dê especial sentido à sua vida, e jamais consideraria que, por isso, a vida de um gato não tem sentido. Talvez fosse mais certo responder ao menino que a vida em si deve ter um
sentido, já que é tão intensa, mas que, por não conhece-lo, os humanos se esforçam para lhe atribuir outros. Ou que a vida tem um sentido coletivo, enquanto os humanos buscam um sentido individual. Fui modesta, respondi a ele qual o sentido que imprimi à minha vida, e me abstive de perguntar-lhe o que tem em mente para a sua.
Crianças podem fazer perguntas muito desconcertantes. Algumas perguntam porque querem saber, outras porque desejam aquele mínimo momento de protagonismo. Quase sempre perguntam minha idade, a professora fica constrangida, eu acho graça e, quando respondo, os olhos todos se escancaram, as bocas se abrem, e eu comprovo que tenho uma idade muito espantosa para quem está apenas no começo do percurso. Desta vez não foi diferente.
Tudo, na escola aonde fomos, é limpo e ordenado. Não só os ambientes. Ordem perpassa também as pessoas, os rostos de adultos e crianças de múltiplas raças. A mesma ordem que se encontra nas ruas impecavelmente varridas, no rolar do trânsito, nas fileiras de árvores da mesma espécie plantadas à mesma distância umas das outras, a ordem com que ao cumprimentar alguém se recebe infalível resposta. Fico tentada de chamá-la civilização. Mas seria ofensivo para países desordenados como o nosso. Que seja tradição, um viés cultural? Mas conheci Portugal antes de sua entrada na Comunidade Europeia, quando certamente não era limpo, e se ordem havia era costurada pela melancolia.
Então somos obrigados a reconhecer que de civilização se trata. E, quem sabe, a vergonha nos sirva para sair em busca dessa conquista que outros países obtiveram.
Semana que vem, conto do esplêndido museu que visitei hoje, Casa de Histórias, dedicado à obra da pintora portuguesa Paula Rego.