Marina Manda Lembranças D omingo, em casa da favela junto ao meu prédio, houve festa na laje. A música tocou altíssima das quatro da ...

Marina Manda Lembranças
Na Alemanha, em todas as portas de todos os vagões dos trens em que viajamos, há um sinal recomendando silêncio. Percorrendo-os em busca do vagão restaurante, tinha-se a impressão de estar no palácio da Bela Adormecida. Os viajantes até conversavam, mas baixinho. Há um caso que sempre se conta na minha casa, de um professor amigo do meu marido que, tendo se mudado para a Alemanha e obtido um bom posto na Universidade, em breve desistiu e voltou para o Brasil. Não havia suportado o silêncio.
Silêncio e ordem em toda parte. Sobre esses dois trilhos, o país avança. Pela janela do trem vi muitos povoados, pequenas cidades. Todos semelhantes, a mesma arquitetura, os mesmos tetos inclinados para não reter a neve, o mesmo gabarito de três andares, as mesmas paredes brancas. Não havia nenhum pagode chinês, nenhuma casa com portal de colunas como as mansões de O Vento Levou, nenhuma casa pintada de roxo. Ao contrário dos habitantes da Barra, os alemães gostam de se manter discretamente na tradição.
É nessas cidadezinhas que os jovens estão morando. De tantas pessoas com quem estive e com quem conversei, quase nenhuma morava em Frankfurt ou Colônia ou Berlim. As grandes cidades são caras e apertadas, melhor viver numa casa confortável, tomar um trem ou um carro de manhã e chegar ao trabalho sem engarrafamento e sem estresse.
Vi, com surpresa, muitos painéis de captação de energia solar, naqueles telhados. Surpresa, porque o céu esteve nublado durante toda a nossa estadia, condição que se mantinha quase inalterada há cerca de seis meses. Sol, para atuar naquelas placas, só nos próximos meses de primavera e verão, verão e primavera que não são nenhuma brastemp. Ainda assim, eles investem, enquanto nós que temos sol para exportação pouco cuidamos de aproveitar-lhe a força.
Investe-se muito também em energia eólica. Ao longo de toda a nossa viagem passamos por muitos parques eólicos, as hélices girando inverno e verão, noite e dia, esbeltas como garças. Passei também por um antigo moinho de vento que não creio esteja em funcionamento, e pensei com ternura nos tantos serviços gratuitos que o vento tem nos prestado ao longo dos séculos. Que diferença da ameaçadora usina nuclear que cruzou nosso caminho, escura e envolta em fumaça, usina que Merkel está batalhando para extinguir.
Olhando essa paisagem quase plana, de mansas ondulações, percebe-se que há três opções para a terra alemã: ou é campo, ou é cidade, ou é floresta. Não existe terra abandonada, não há chão cujo dono só aparece no papel. Tudo tem função.
Mas não existem mais, nos campos da Europa, os palheiros de que eu gostava tanto quando criança. Agora as máquinas que cortam as colheitas também recolhem a palha e a transformam em rocambole bem comportado. Os palheiros de antigamente iam sendo consumidos dia a dia, a palha retirada com o forcado ia modificando a silhueta ao longo dos meses, criando aquele perfil de pêra mordida que tanto encantou Monet. Os palheiros abrigavam cheiro e calor de sol. Os rolos forrados de plástico permanecem inalterados no limite dos campos.
Antes de voltar, procurei na enorme Estação de Berlim um grão de poeira para trazer de lembrança. Não encontrei.