Marina Manda Lembranças S aímos do sítio depois do almoço. E pegamos a estradinha de terra. Íamos consertar filó. O sítio era perto d...

Marina Manda Lembranças
Sobre o pó da estradinha, a tarde escorria mansa feito riacho em seu leito. Poucos pássaros nas árvores, talvez repousassem. Por vezes um cantar. Um ou outro trabalhador cruzou conosco na estradinha, uma ou outra mulher com filho no colo ou pela mão. Trocávamos cumprimentos ao passar. Entre os dentes, levávamos um talo de capim arrancado da beira para ir mastigando no caminho.
Era longo o caminho. Passamos por várias casas antes de chegar. Mas afinal, chegamos. Nosso destino não era uma casa, era um ponto ao ar livre, sob as árvores, rodeado de mato. Nesse ponto, espécie de terreno batido e varrido, Dona Morena ( o nome real não é este, e já se verá porque o troco), conhecida da minha amiga, consertava filó.
A questão do filó era coisa de outros tempos, que sobrevivia quando já usávamos tule sintético. Da Fábrica de Filó, em Friburgo, por descuido ou incompetência das máquinas, o produto saía com falhas que eram detectadas estendendo-se o filó sobre imensas mesas e marcando cada falha com um grosso lápis vermelho. O filó marcado era então metido em sacos e entregue às consertadoras, mulheres do campo que faziam esse serviço para ganhar um dinheirinho extra. O pagamento ínfimo fazia-se por falha consertada.
Todas as tardes, pelo menos no verão, Dona Morena sentava-se num banquinho, o colo coberto pelo filó que espumava ao redor, metros e metros daquele branco quase impalpável rodeando-a e derramando-se sobre o terreiro. Era filó de algodão. E usando uma agulha enfiada com o fio daquele mesmo algodão, ela ia cerzindo, se assim se pode dizer, cada falha.
Não só ela. Como um ninho, o filó abrigava várias crianças de várias idades que, pedindo uma agulha à matriarca, cuidavam a seu modo de remendar filó. Nós também, ao chegar, pedimos um banquinho e uma agulha, pegamos uma ponta qualquer daquela espuma, e começamos a recompor os alvéolos falhados.
Tomava-se café, água de moringa, conversava-se sem pressa de assuntos sem importância. As galinhas ciscavam ao redor, uma gata cuidava da ninhada. O tempo era acolhedor como o filó.
Mas aconteceu que, de repente, outra personagem entrasse naquela cena. Dona Morena então se levantou, sacudiu da saia os fiapos de linha branca, entregou a agulha a uma das crianças, e foi arrastando sandálias até o recém chegado. Era o seu amante. Com a maior naturalidade encaminharam-se os dois para o mato, onde a função do amor se desenrolou protegida pela silenciosa conivência de crianças e adultos. Depois, Dona Morena reassumiu agulha, banquinho, e sua pose de rainha.
Ao escurecer, minha amiga e eu voltamos para o sítio como se regressássemos de uma viagem.
Não há mais falhas no filó de nylon que sai das máquinas rígido e perfeito como uma rede. As máquinas modernas não ousam errar. Mas esse filó que mais parece de matéria plástica não acolhe ninguém, não ficará na memória de nenhuma criança como a espuma aconchegante que em tardes de verão se espalhava pelo terreiro.