Marina Manda Lembranças C omo escrever uma crônica em tempos de guerra como os que estamos atravessando? Conversava na segunda-feira ...

Marina Manda Lembranças
Nem há cabeça para falar de amenidades com a câmara pegando fogo, o senado pegando fogo e o Palácio da Alvorada em chamas. Então, melhor ficar no clima e falar de guerra.
Uma outra guerra, porém. Aquela relatada por Svetlana Alexiévich no livro de que falei na semana passada, "La guerra no tiene rostro de mujer", que agora estou lendo.
Como todos os livros dessa jornalista e prêmio Nobel bielo-russa, este também é de depoimentos. No caso, depoimentos de algumas das tantas mulheres que combateram na linha de frente do exército russo na Segunda Guerra Mundial. Eram cerca de um milhão, embora quase não se fale delas. O dobro das quinhentas mil dos Estados Unidos, que o cinema preferiu nos mostrar sempre lindas e bem maquiladas, sempre na retaguarda. E o dobro das alemãs.
Svetlana nasceu em 1048, bem depois do fim da guerra. Mas o avô ucraniano havia sido morto em batalha, a avó paterna havia morrido de tifo em um destacamento de partisans e dos seus três filhos que foram para a guerra só um voltou para casa, o pai de Svetlana. Onze de seus familiares foram queimados vivos pelos alemães. A guerra está emaranhada em suas raízes.
"Percorri um longo caminho com minhas personagens - escreve -. Como elas, tive que deixar passar um tempo para poder assumir que nossa Vitória tinha duas caras: uma bonita e a outra espantosa, coberta de cicatrizes. Olhar para ela dói. "
E começam os depoimentos das mulheres.
"Ninguém imagina como é difícil matar um ser vivo. Eu pertencia a uma organização clandestina. Me mandaram obter um posto de camareira no refeitório dos oficiais (...) Tinha que botar veneno na sopa deles e voltar ao acampamento dos partisans . Mas eu havia me acostumado com eles.(....) Matar é difícil. Matar é mais difícil que morrer."
E contam que lhes cortaram os cabelos quando se alistaram, eram meninas cheias de entusiasmo e tiveram que aprender a atirar e a se camuflar, e porque só dispunham de 5 minutos para se vestir e calçar escolhiam botas um número maior para que deslizassem mais rapidamente nos pés. Finda a guerra e de volta a suas casas, foi preciso reaprender as pequenas coisas do cotidiano, ser novamente mulher, usar sapatos e vestir saias.
Diz uma franco atiradora mais de dez vezes condecorada, com 75 mortes no currículo:" Uma coisa que penso...Escuta só...Quantos anos durou a guerra? Quatro anos. É muito tempo...Não lembro nem de pássaros, nem de cores. Claro que estavam presentes, mas não lembro deles. Sim... é estranho, não é? Será que os filmes sobre a guerra podem ser coloridos?Ali tudo é negro. Só o sangue é de outra cor, só o sangue é vermelho..."
Embora a escuridão, o feminino permanece. As combatentes que não temem o inimigo se assustam com ratos, e enfrentando a morte pensam que o pior seria morrer feias ou desfiguradas. Ninguém, na organização, pensou em providenciar absorventes para elas que, andando na neve deixavam rastro de sangue. Só depois de meses de combates descobririam que a tensão e o medo eliminam a menstruação.