Marina Manda Lembranças O deserto de Atacama está em flor. Dita assim, a frase não enche de ondulação e cor o olhar de ninguém. Mais...

Marina Manda Lembranças
Estive em Atacama, faz algum tempo, comemorando um fim de ano com filhas e marido. Atravessamos quilômetros de aridez para nos defrontar, enfim, com a majestade das dunas e a extensão imponente do deserto. Tudo parecia estático no silêncio, enquanto o vento carregava grão a grão. À beira de um deserto fica-se parado, olhando reverente o mistério da erosão, aquela areia que já foi terra e agora se assemelha a um túmulo de vida.
Está bem, reconheço, os turistas nem ficam parados nem reverentes, fotografam, fotografam, fotografam, mais interessados em si mesmos diante da paisagem do que na paisagem em si, mais propensos a quebrar o silêncio do que a ouvi-lo. Mas estar turista é uma condição transitória.
E eis que nesses dias, algo insólito sucedeu em Atacama provocando a floração. Choveu. Não sei se muito ou pouco mas, ao contrário do que sempre acontece, foi água suficiente para não evaporar antes de alcançar o chão. E o chão brotou.
Há quanto tempo as sementes dessas flores esperavam, ignoradas, no escuro da terra? E como foram parar ali? Nada ou quase nada sei de sementes, mas gosto de pensar que estavam ali há séculos, desde antes da desertificação, brotando a cada ano como é hábito das flores, até aquele ano distante em que, pela primeira vez a chuva não veio e elas se refugiaram na letargia. Haviam sido feitas reféns pela aridez.
Grãos de trigo foram achados pelos egiptólogos nas tumbas dos faraós e, se bem me lembro, brotaram. Longa pode ser a resistência das sementes.
Só sementes de flor dormiam à espera em Atacama? Ou só elas brotaram porque a chuva caiu justamente no período que, desde sempre, correspondia à sua floração? Quantas perguntas move o inesperado. Tivesse a chuva caído em outro mês, talvez tivéssemos somente grama ou grãos, talvez rastejassem pétalas azuis.
Rosa, porém, é a cor do Atacama. E lá que flamingos vêm se reproduzir nos lagos da alta montanha e se alimentar depois nas águas da planície, juntando forças para a migração. Do alto, talvez tenha sido difícil para eles, vindos de outras paragens, reconhecer seu habitat de amor assim transformado. Ou reconhecer naquela imensa ondulação a mesma cor das suas asas.
Não durarão muito as flores do Atacama. Flores pouco duram, mas estas, que não estavam destinadas à luz, terão vida ainda mais breve. Quanto tempo terão que esperar a partir de agora, nesta Terra que se aquece dia a dia tornando outra chuva sobre o deserto ainda mais improvável?
Nunca houve flores no Sahara. Ou nunca as houve desde que o deserto se alastrou. Camelos não pastam flores.
Nas fotos do Atacama em flor veiculadas pela internet, vejo raros turistas metidos até os joelhos daquela maré rosa ondulante, fotografando. As fotos, recolhidas no escuro ventre dos celulares não brotarão no tempo. Mas assim como os faraós determinaram que grãos de trigo fossem postos em sua tumba para brotarem na vida do além, as sementes do Atacama brotaram da escuridão para suavizar nosso áspero cotidiano.