Marina Manda Lembranças A ssisti a uma entrevista na televisão sem saber que via um moribundo. Embora tivesse 92 anos, estava falante...
Marina Manda Lembranças
O entrevistado era Giorgio Albertazzi. Um desconhecido, no Brasil. Mas conhecidíssimo na Itália — a emissora era a Rai — , nome dos mais representativos do teatro, ator, muitas vezes diretor de si mesmo, poeta.
A conversa foi longa e rica. Falou-se de vida, de amor — ele disse que não tinha sabido amar, tinha amado menos do que deveria, enquanto as mulheres, elas sim, amam desvairadamente. Mas o que mais me chamou a atenção foram as últimas respostas que deu ao entrevistador Fabio Fazio quando este, para fechar a entrevista, lhe perguntou quais haviam sido as três coisas mais inesquecíveis da sua vida. E frisou: coisas concretas, não valem as abstratas.
Giorgio pensou, e respondeu:
— O parque de Villa Berenson
— O cavalo de balanço
— O perfume da professora.
No parque de Villa Berenson Giorgio havia morado quando criança, tempo em que seu pai era o administrador e a família ocupava uma casa próxima da Villa. Não era um parque qualquer. De propriedade do historiador da arte americano Bernard Berenson, a Villa, pouco distante de Florença, era um ponto de encontro de artistas e intelectuais, rodeada pelo clássico jardim italiano renascentista. Ao morrer, em 1959, Berenson deixou tudo, inclusive sua preciosa coleção de obras de arte, à Universidade de Harvard, que o transformou em Centro de Estudos. A quem quiser saber da beleza que se manteve intocada na memória de Giorgio, sugiro que procure no google as imagens do parque.
Ele ainda era um menino no dia em que o pai o chamou: "Jorginho, venha olhar pela janela". Jorginho olhou. E lá embaixo viu um cavalo de balanço todo preto, com uma sela vermelha. Podemos crer que ao longo da vida tenha visto muitos outros cavalos, vivos, verdadeiros, e que tenha até montado alguns. Mas nenhum conseguiu preencher tão plenamente o seu desejo primeiro de possuir um cavalo, nem foi tão bonito e nobre quanto aquele todo preto que esperava imóvel enquanto ele descia desabaladamente as escadas. E é certo que nenhum teve sela mais vermelha.
O menino Giorgio foi à escola. E na escola estava a professora. Que no primeiro dia o abraçou, imprimindo nos seus sentidos, para sempre, aquele inigualável cheiro de pele e carne e mulher. Sim, ele repetiu na entrevista, concentrado como se o procurasse nas narinas, o perfume da professora.
Giorgio Albertazzi teve todo o êxito com que um homem de palco pode sonhar. Estreou em uma peça de Sheakespeare dirigido por Luchino Visconti, apresentou-se em todos os maiores teatros da Itália e da Europa, foi Hamlet no Old Vic sob a direção de Zeffirelli, fez cinema, dirigiu, atuou. Sua vida contêm também um começo dramático quando, ao fim da Segunda Guerra Mundial, ficou preso durante dois anos por colaboracionismo, sendo libertado graças a uma anistia.
Mas tão perto do fim, o que mais vivo se mantinha na sua lembrança eram os ciprestes e as sebes do jardim em que brincava na infância, o falso pelo negro de um cavalo de madeira, e o perfume da pele, ah a pele!, da professora.