Marina Manda Lembranças H oje tenho um hematoma na alma. Encerrou-se um amor generoso que durante quinze anos transmitiu seu calor a ...

Marina Manda Lembranças
Não creio que Pixie ouvisse, quando lhe pedi perdão pelo acidente que a vitimou. Dopada pelos remédios, lutava contra o chamado da dor e contra o não entendimento - não entendia por que não conseguia se levantar, inertes as patas.
E certamente não poderia ler o que agora escrevo sobre ela. Leitora tão plena do mundo ao seu redor, nunca pareceu sentir falta de ler palavras. Era eu que lia ou escrevia tentando entender a vida, enquanto ela deitada serena no chão do meu escritório parecia ter seu próprio entendimento. Ocupadas em nossas respectivas naturezas, tomávamos conta uma da outra. Ela pronta a se levantar se eu o fizesse, eu olhando-a de vez em quando ou dirigindo-lhe alguma palavra só para ter certeza de que estava bem, protetoras as duas em nosso pacto de afeto.
Chamava-se Pixie porque era uma yorkshire, e quando ao nascer me foi dada de presente, única fêmea entre quatro irmãos, fui em busca de um nome que a vestisse como pele. Li, então, que nos bosques do Yorkshire habitam pequenos gênios, mínimos duendes chamados Pixies. E pareceu-me que havia nascido para esse nome, ela, a mais esperta da ninhada, tão pequena que cabia na minha mão, e que pouco haveria de crescer.
Tive muitos cães na infância e juventude, policiais, dobermann, setter, um galgo italiano, um pelo de arame. Mas o cão pequeno traz consigo uma delicadeza especial, uma fragilidade que nos torna responsáveis absolutos pelo seu bem estar. Ao buscar Pixie após o desmame, tirando-a da mãe, ficou evidente que seria eu sua mãe dali para a frente.
Maternalizar um cão parece uma atitude senil. Não é. Os muito jovens, mais voltados para a construção de si mesmos, não encontram espaço para essa doação, nem se apercebem plenamente do tanto que lhes é dado. Só bem mais tarde dá-se pleno valor ao amor que se recebe.
Pixie olhava o mundo de baixo para cima, e era instintivo pegá-la no colo para que visse de outro ângulo e recebesse palavras de carinho junto ao ouvido. É tão pequena uma york, que todos na casa se certificam o tempo todo da sua localização, para não pisá-la ou não perdê-la. A uma york se dão mínimos pedacinhos de comida na hora das refeições, porque parece cruel que participe em seco de uma cerimônia tão familiar. Uma york pede para subir no sofá quando a dona lê jornal. Uma york dorme na cama dos donos.
Mas cães, mesmo os mais amados, avançam no tempo com passos mais largos que seus donos. Aos poucos, Pixie foi ficando cega, depois surda, o olfato quase sumiu. Sentia mais frio. Eu que nunca menti minha idade, mentia a idade dela. Não queria viver com antecedência o que, inevitavelmente, me aguardava. Mas ela nunca me mentiu. Me fez saber que precisaria de cuidados crescentes, que, trancada no escuro e no silêncio não se levantaria mais quando eu me levantasse, que não ficaria o tempo todo perto de mim, mas dormiria longamente em lugares protegidos. E me fez saber, lambendo minha mão até a última hora, que nossa convivência estava perto de acabar, sem que se desfizesse nosso laço.