Marina Manda Lembranças P assei num ponto da calçada onde sempre passo, e já não era a mesma calçada. Justo no dia anterior eu havi...
Marina Manda Lembranças
Repararam. Passei na calçada onde sempre passo, e todo aquele trecho, antes acolhedor como um bosque, havia sido brutalmente despido. Uma luz descarada alastrava-se como inundação por toda parte, rodeando o tronco que, justo no dia anterior, eu havia acariciado com o olhar. E não havia uma única folha.
Não foi uma poda razoável. Foi uma tentativa de assassinato. Cortaram os galhos junto ao tronco como se decepassem braços junto ao ombro. Nada sobrou além do monólito vegetal, espécie de menir urbano com que só os deuses podem dialogar. E não duvido que funcionários venham com serras mais potentes para eliminá-lo.
Justamente nesses dias, Daniel Chamovitz havia nos dito que as plantas sentem quando são tocadas, percebem cheiros e gostos, podem ver. Chamovitz sabe tudo do assunto, é geneticista de plantas, autor de um livro "What a plant knows".
Já sabíamos que tomateiros reagem com pavor quando um tomateiro vizinho é atacado, que estremecem quando feridos ou queimados com fósforo. O que não sabíamos – eu, pelo menos — é que, ao ser atacada, uma árvore — suponho que também um tomateiro — libera no ar substâncias químicas que outra árvore — ou tomateiro — sente. Sistema defensivo útil quando se trata de um ataque de insetos ou de uma praga, contra a qual a criatura vegetal ao lado pode criar mecanismos de defesa. Mas esforço sem resultado se o atacante é um ser humano. E patético quando ele vem armado de serra e machado.
Teriam as outras árvores da calçada, tão menos exuberantes, captado a tortura à qual a companheira estava sendo submetida? Árvores sabem distinguir luzes, as azuis, das vermelhas. Mas desconhecem intenções, e não tinham como saber que só o ficus havia sido marcado para morrer. Durante horas, um pavor desnecessário e invisível habitou aquele trecho de calçada. Impossibilitadas de fugir, elas temeram igual destino.
Hoje tive minha vingança. Voltando para casa, com a alma ainda amarrotada pelo ataque ao ficus, reparei num mamoeiro que o acaso, ou a mão devota de alguém, plantou no canteiro frente a um prédio. Um mamoeiro inesperado e tão jovem, da minha altura, delicado como sabem ser os mamoeiros, tronco esquio e limpo, folhas de longo talo simetricamente esparsas no alto. Jovem, mas já trabalhando com firmeza. Junto ao tronco, no despontar dos talos, havia produzido brotos que logo seriam flores, e flores brancas que mais lentamente seriam frutos.
A vingança é da natureza, respondendo com multiplicação e abundância, à brutalidade dos ataques. Mas a faço minha, pelo vazio que senti com a ausência na calçada, e pelo risco de atropelamento que corro atendendo aos encantos vegetais.