Marina Manda Lembranças O homem está caído no chão ao lado de um veículo militar. Há outros dois veículos mais atrás. Ao fundo, con...
Marina Manda Lembranças
Olho a foto na primeira página do jornal, e a Líbia que trago em mim não é essa.
Uma porta de cozinha dando para um jardim não chega a ser lembrança de um país, nem mesmo de uma cidade. Mas somada a um muro e a um cáctus grandíssimo vai ganhando consistência. Havia um cão. Creio que um poço. E podemos acrescentar um velocípede.
Tão pouco isso. No entanto, toda vez que esbarro na palavra Líbia, estremece em mim um amoroso sentimento de posse.
Não fiquei com nada material da Líbia. Pelo contrário, ficou ela com o que possuíamos. Guardei somente palavras, nomes atravessando relatos familiares, fragmentos que, somados à porta, ao muro, ao cão, construíram Tripoli, a cidade onde morei, e aquela que, para sempre, mora em mim.
Cirenaica, era uma dessas palavras. E por que Cirenaica? Porque a Itália desejava recuperar plenamente essa região, atraindo colonos para que, como os antigos romanos tão antes deles, plantassem trigo, oliveiras, vinhas, transformando a Cirenaica no celeiro do novo império.
E os antigos romanos, me remetem a meu avô. Antes mesmo que eu nascesse, meu avô, historiador da arte, diretor das Belas Artes — na Itália de então algo equivalente a ministro da cultura — havia comandado os trabalhos de escavação e recuperação da ruínas romanas da Líbia, circos, templos, mercados, que constituiriam um rico circuito turístico.
Era bom morar em Tripoli no final dos anos 30. Muito bom. Meus pais tinham vida social muito intensa, havia festivais de cinema, corridas de automóveis, espetáculos teatrais, editavam-se revistas, as maiores personalidades italianas visitavam a colônia. O albornós preto que meu pai usava por cima do smocking, de lã bordada em seda, com seu capuz majestoso, dorme na minha casa dentro de um baú — não é fácil usá-lo no Rio, embora o tenha feito em juventude. O branco, da minha mãe, bordado em fios metálicos de prata, se foi com ela. Assim saíam os dois à noite para as festas, o cassino, ou as recepções oferecidas pelo governador.
Era bonito morar em Tripoli. Uma cidade branca, árabe, toda em arcos, à beira mar, com clubes, hotéis, jardins. Nossa casa era grande, me disseram. Nenhuma foto me chegou, nem lembro dos ambientes, de presenças, sequer dos meus pais. Eu era muito pequena, começava apenas a engatinhar na memória.
Das palavras ligadas à casa, lembro mais tarde, quando a guerra já havia sido declarada e minha mãe havia regressado conosco à Itália. Vezes tantas a vi debruçada junto ao rádio, ouvindo as proibidíssimas emissões de Rádio Londres, tentando saber o que acontecia com meu pai, que ficara em Tripoli ligado ao trabalho e "tomando conta da casa". Na casa estava tudo o que tínhamos, os presentes do casamento, os tapetes, a herança do meu avô e o retrato dele feito por um bom pintor da época.
Ficou tudo lá. As tropas inglesas chegando, meu pai considerou-se feliz por poder partir. Imagino que nem tenha trancado a porta.