Marina Manda Lembranças A s meninas da seleção japonesa de ginástica não são exatamente meninas, sei disso. Há uma idade mínima para...
Marina Manda Lembranças
Há de ser a delicadeza japonesa.
Estava eu recentemente numa sorveteria, observando uma família, mãe, pai, filho. E comentava com meu acompanhante como são dominantes os olhos orientais. A mãe japonesa ou descendente, e o pai brasileiro, haviam gerado um filho de inevitáveis olhinhos puxados. No ginásio, quando estudamos a hereditariedade através das inesquecíveis moscas de Mendel, não se fez referência ao corte das pálpebras, falou-se nos olhos azuis, que são recessivos, mas nenhuma menção foi feita ao conjunto imbatível, íris negra e ângulo fechado. Muitos filhos devem ter sido gerados pelos GI do exército de ocupação americano no Japão após a Segunda Guerra, mas nunca vi nenhum japonês de olhos puxados e azuis.
E eis que na sorveteria a família terminou sua pausa de prazer, o pai pegou o filho no colo e foi rumo à saída. A mãe, com gestos quase coreográficos, ajeitou os três tamboretes diante do balcão, certificou-se de que estivessem bem alinhados, recolheu os guardanapos, deu uma última olhada. E só então se foi.
Nenhum dos vários frequentadores da sorveteria havia tido cuidados semelhantes enquanto estivemos ali.
Talvez, no colégio, devessemos ter estudado a transmissão hereditária da delicadeza, embora eu não creia que Mendel a incluísse nas suas pesquisas, pelo menos não com as moscas.
Ainda como estudante, embora bem mais tarde, tive uma pequena colega na faculdade de Belas Artes. Brasileiríssima, filha de japoneses. Lembro que morava em São Conrado, quando São Conrado era distante e nos parecia quase rural. E tudo o que ela desenhava, tudo o que modelava em argila, tudo o que pintava era, de forma inconfundível, japonês. E japonês era seu leve peso. Não que fosse mais magra que qualquer uma de nós, mas pairava na vida como se propositadamente anulasse, com seu modo de ser, o peso corporal. A literatura dos seus antepassados teria dito que era de jade.
A delicadeza é um fato cultural, e como todo fato cultural se transmite através do exemplo, da tradição, e das exigências sociais. Isso é o que nos ensina a antropologia. Mas Levy Strauss, antropólogo desde a infância apaixonado pelo Japão e autor de um livro delicioso — e percuciente — sobre a cultura japonesa, ultrapassa em seus estudos essas fronteiras tão estritas. Quase autorizada por ele, permito-me pensar na possibilidade de que, como o corte das pálpebras, a delicadeza viaje no DNA dos nipônicos.
Senão, como explicar a diferença entre japoneses e chineses? O Japão apropriou-se intensamente da cultura chinesa. Tomou os ideogramas, decorou a poesia, inspirou-se na arte da China. Mas a China, embora capaz de produzir poetas estupendos como Li Po e Po Chu I e de inventar a suprema delicadeza da porcelana, sempre foi um cultura voltada para a brutalidade. Leio, nestes dias, o livro “As rãs”, do prêmio Nobel chinês Mo Yan, e a ferocidade entretecida de humor é o fio condutor dessa história épica que atravessa várias gerações.
Não sei, enquanto escrevo, a colocação das meninas japonesas na disputa olímpica. Eu, pessoalmente, já lhes outorguei a medalha de jade.
Na imagem da crônica: Ginasta Aiko Sugihara / Foto de Rebecca Blackwell