História da Moça e Rio (Para Marina Colasanti, que sempre inspira) Por decisão de seu pai, Em excessos de cautela Desde que a mãe lh...
História da Moça e Rio
(Para Marina Colasanti, que sempre inspira)Por decisão de seu pai,
Em excessos de cautela
Desde que a mãe lhe morrera,
Vivia a moça na torre
Vida de prisioneira:
Seu mundo era uma janela.
Entre a janela e o mundo,
Tinha o morro que impedia
A moça de ver por inteiro
O corpo forte do rio,
Seu peito pescoço e braços,
Seu ondular, seus abraços.
Ela só via a nascente
Como se o rio fosse aquilo:
Um pedaço de serpente
Sem cabeça a conduzi-lo.
De modo que a vida da moça
Era igualzinha à do rio:
Que só brotava e brotava
Mas nunca que caminhava.
Ou se, certo, desaguava
Era pra um longe mistério
A todos e a si mesma vedado.
Mas a moça, como o rio,
Tinha um corpo a viver:
E este corpo pulsava.
Pulsava pedia e doía,
Pulsava como o do rio,
Que a montanha escondia.
Um dia em franca tristeza,
De olhos a marejar,
A moça pediu ao pai
Que queria ver do rio
O corpo todo, integral.
Mas o pai já por prazer
De a moça contrariar,
Não permitiu o passeio
Alegando tais perigos,
Que a moça chorou de medo
Do corpo sonhado do rio
E pelo seu, de arremedo.
A moça então apegou-se
À sua imaginação:
Agulha e tecido nas mãos,
Ela se pôs a bordar
A parte oculta do rio,
Aquela que nunca vira.
Mas como ela não sabia
Como era o rio a correr,
Foi deixando no bordado
A água se acumular.
Enquanto isso a cidade
Não sabia explicar
Como sem chuva nem nada
O rio se estagnava
E começava a vazar.
E a moça bordava e bordava
Um rio cada vez mais quieto,
Que se foi acumulando
E virou um mar tão forte
Que cobriu toda a montanha
E trouxe a sina da morte.
A cada ponto da moça,
Cem pessoas se afogavam
Dentro do rio-mar.
Quando a noite se assentou,
Do rio cessou a matança,
Veio o pai a visitá-la
Pra narrar-lhe a desusança.
Encontrou a moça nua
Sem qualquer viés de vida,
Enrodilhada nas linhas
Do bordado interrompido,
Agarrada a dois abrolhos,
Que impediam o abraço
Do corpo viril do rio
Que lhe emanava dos olhos.
O texto acima foi escrito pelo Carlos Emilio Faraco em homenagem à Marina Colasanti.