Marina Manda Lembranças C heguei diante da porta do elevador e a vi, parada como quem espera, conversando com o porteiro. Alta, co...
Marina Manda Lembranças
Deixamos sair o passageiro, entramos, fechamos a porta pantográfica. Só nós duas. A subida era lenta. Reparei nos cabelos dela, quase brancos, penteados em trancinhas junto à cabeça. Duas argolas enormes nas orelhas, lembro meu sorriso interior ao pensar que caberia um papagaio.
Ela começou a contar como havia vindo a pé desde a Rua Santa Luzia — era uma distância considerável, sobretudo para alguém daquela idade e daquele peso. Disse que sempre havia gostado mais de andar do que de pegar condução, mas que agora estava ficando muito cansativo. Botou a mão no peito farto testando a respiração, e acrescentou, com o orgulho de quem bate um recorde, que continuava trabalhando. Perguntei a idade. 75, respondeu.
Fui metida, reconheço. Mas rebati que eu tinha 78 e também continuava trabalhando. Ela me olhou de alto a baixo. O elevador ia chegando ao seu andar. Perguntou-me o que eu fazia, botou a mão na pantográfica. "Sou escritora", respondi. Abriu a porta e, já do lado de fora , "Assim é fácil", disse, não sem desprezo. E, como uma rainha que arrasta o manto, acrescentou já afastando-se, "Eu trabalho com cálculo".
Dois andares acima, chegando ao escritório que era minha destinação, contei meu encontro. Aí soube do resto.
A senhora era velha conhecida do prédio, que há muitos anos frequentava para algum serviço de contabilidade. Todos sabiam do seu absoluto pavor de elevador. Recusando-se a subir sozinha, ficava parada diante da porta, à espera de que algum outro usuário lhe fizesse companhia. Daí a conversa com o porteiro quando eu a havia encontrado.
Mas havia mais. Acontece que aquele elevador, velho e sistemático, tem o péssimo costume de parar, às vezes, no meio do percurso. Nenhum perigo. Todos os frequentadores do prédio sabem que basta esperar, e logo o funcionário religa o mecanismo, tudo voltando à normalidade.
Alguns, porém, haviam ficado presos com a senhora, e relatavam cenas apocalípticas. Como em filme de terror, ela gritava aos uivos, ameaçava desmaiar, e se agarrava frenética ao pobre companheiro de viagem. Aquilo que teria sido mera rotina se transformava em pesadelo.
E a narrativa do pesadelo, mais de uma vez repetido, espalhou-se entre a população do prédio. Em breve, ninguém mais se arriscava a subir com ela. Se a vissem esperando na portaria, diante do elevador, davam marcha a ré, iam pelos fundos ou subiam pela escada.
A espera da senhora que entende de cálculo foi ficando mais e mais longa. Ciente do que estava acontecendo, o porteiro apiedou-se e, embora não sempre, passou a fazer-lhe companhia conversando ali, de pé, como os havia encontrado.
Nenhum dos dois perdia a esperança de ver chegar algum estrangeiro ou visitante ignaro que, com toda a naturalidade abrisse a porta e entrasse com ela no elevador. Como eu.
Imagem da crônica: Lellis. Em Copacapana, uma relíquia - Leo Martins / Agência O Globo