Marina Manda Lembranças D e repente alguma coisa cai. Um sapato na sapateira, um livro da estante. Há um mínimo sobressalto, voltamos...

Marina Manda Lembranças
Certa vez, passei uma noite inteira na floresta, sem dormir. E folhas caíram a noite inteira com um leve farfalhar, estrelas cadentes daquela escuridão. Cheguei a pensar que, como eu, o bosque estava acordado. Mas não havia cantar de pássaros nem deslizar de serpentes, nenhuma formiga escalou meus pés. Tudo dormia. Dormem as árvores? Uma ou outra folha se desprendia do galho e volteava, ainda entorpecida, para entregar-se ao último sono. Na floresta, a noite só noticia aquilo que tomba.
De repente, no silêncio de uma casa, na sala vazia de visitas, um baque. Foi assim uma noite na mansão em que eu vivia com minha família. Criança, eu dormia. Mas na salinha, os adultos despertos jogavam cartas e conversa fora quando, altas horas da madrugada, uma pancada ecoou no salão. Foram todos em grupo verificar. Acenderam-se as luzes, e a causa do barulho revelou-se, grande quadro com moldura dourada tombado sobre o mármore. Era o retrato do tio, personagem nacional que ordenara a construção da mansão. Disseram, depois, que junto com o baque havia-se ouvido tocar a campainha, e que não havia ninguém na porta. Mas esse foi talvez um acréscimo para tornar sobrenatural aquilo que não o era, prego modesto cedendo ao peso de um quadro e de uma personalidade pesados demais para ele.
Cai uma avalanche na montanha, cai um corpo na escalada. Ninguém os empurra. Uma nevasca a mais, um ruído, um grito ou um chamado que percorre a neve como um arrepio, e tudo vem abaixo. Os montanhistas sabem, a neve tem ouvidos sensíveis. E os flocos, tão leves, pesam. Quando jovem, escalei a pedra do morro do Cantagalo. Não caí. Até hoje passo diante daquele manso granito e me surpreendo de ter subido incólume pelas fendas e pelos caminhos, alcançando o alto. Pedras rolavam para baixo sob as solas dos meus tênis. Mas nenhum pé divino me fez rolar.
Caem, de repente, os governos, os regimes. Caem, arrastadas por cordas que a multidão ata, as estátuas dos líderes. Assim vi cair a estátua de Dzerjinski, fundador da KGB, até então sólida sobre seu pedestal diante do sinistro prédio da instituição. Mas não bastou o esforço da multidão, foram necessários dois guindastes Krupp, e cabos de aço. Talvez temendo o final, a estátua havia sido chumbada com especial firmeza. Era agosto de 1991, passava da meia-noite, e estávamos em Moscou.
Não era a primeira vez que via cair um regime. Quando o fascismo acabou na Itália da minha infância, mais do que as estátuas foi o próprio líder que veio abaixo, Mussolini morto e pendurado pelos pés com sua amante, numa cena de açougue em praça pública.
De repente, alguma coisa cai em nós. Uma defesa ou uma máscara, uma culpa ou uma vaidade. Uma nova consciência. A ficha. O homem raspa o bigode que escondia o defeito dos dentes, a moça para de se culpar por ter engravidado, o filósofo aceita sua falta de entendimento da vida. Há um sobressalto, mas não voltamos a cabeça. Olhamos para dentro. E temos a clara percepção do movimento.