Marina Manda Lembranças D o começo, nas primeiras horas da manhã, não tomei conhecimento. Acontecia do outro lado do morro, dessa quas...

Marina Manda Lembranças
Já era de tarde quando ouvi a explosão. Tinha havido outra antes, mais fraca, mas o barulho de ferragens se chocando tornou-se comum desde a instalação do metrô, e acreditei que fosse isso. A segunda foi forte, de sacudir o coração senão o prédio. Pensei logo em um acidente no metrô e me inquietei, embora não estivéssemos em hora de ponta. Pouco depois, outra explosão. E sirenes.
Fui ao terraço, ver se entendia o que estava acontecendo. Moro perto da estação de metrô de Ipanema, andar alto. Olhei, vi algumas pessoas paradas olhando na mesma direção. Não parecia haver clima dramático. Voltei para dentro.
E logo, uma explosão mais. Do meu terraço não vejo a frente do Conjunto Rubem Braga, nome da estação. Vejo os fundos e uma parte da comunidade do Pavão/Pavãozinho. Agora havia fumaça nos fundos.
Sem saber qual a situação - as copas das árvores ocultam uma parte da rua - demorei um pouco no terraço. E aí os vi. Homens com pinta de cidadãos comuns, ou seja, de bermuda, camiseta e sem armas, vinham descendo em grupo pela escadaria de cimento que facilita o acesso à comunidade. Eram uns cinco ou seis e carregavam dois engradados cheios de garrafas. Pararam num patamar junto à parede dos fundos do metrô. Acima, no telhado da estação, outros homens se aproximaram. Havia um entendimento, trocavam ordens e informações. Alguns populares ao longo da escadaria acompanhavam a operação com naturalidade.
Ao longe, ouviam-se rajadas de tiros.
Para minha surpresa, os de baixo começaram a tirar garrafas vazias dos engradados e a lançá-las para as mãos dos de cima. Com uma garrafa em cada mão, os de cima corriam lá para a frente, e eu os perdia de vista, ocultos pelas quinas. Para que garrafas?, me perguntava. Cheguei a pensar em coquetéis molotov. Os de baixo trouxeram um terceiro engradado.
Nisso, o telefone tocou. Era minha sobrinha ligando de Los Angeles. Diante da televisão ligada, acabava de ver a guerra em Ipanema e Copacabana, meu prédio havia sido focalizado junto com os homens no teto da estação. Mais bem informada que eu, e mais nervosa, queria saber se estávamos todos em casa, se estávamos seguros.
Foi assim que tomei conhecimento da plena situação, através de um telefonema da minha sobrinha em Los Angeles .
À noite, diante da minha própria televisão, saberia que as garrafas não serviam para fazer coquetel molotov . Meu pensamento havia sido moderno, indo automaticamente para as guerrilhas urbanas da atualidade. Mas a situação era bem mais arcaica. Substituindo as pedras dos primórdios, as garrafas só serviam como projéteis, atiradas contra os carros da polícia e os policiais.
Fui dormir com o som do helicóptero sobre nossas cabeças. De manhã acordei com ele. E, como todas as terças, fui à feira na Praça General Osório. Três ou quatro lojinhas e um bar diante do morro estavam fechados por ordem dos homens, luto obrigado por traficantes mortos. No mais, apesar do nosso grave luto social, tudo parecia normal.