Marina Manda Lembranças J á estava com uma crônica pronta sobre Halloween, mas jogo fora. Surgiu coisa mais assustadora que bruxas. ...
Marina Manda Lembranças
O agora prefeito Crivella diz em entrevista a Evandro Éboli, de O Globo, que João Doria, Alexandre Kalil e ele próprio estão unidos por semelhança de pensamento: a "preservação dos valores tradicionais da civilização cristã ocidental". Embora os outros dois não tenham concordado formalmente, fico um tanto inquieta com essa ênfase na "civilização cristã ocidental" em um país como o nosso, de pluralidade religiosa, e em tempos globalizados, de abertura para outras civilizações. Aumentando ainda mais minha inquietação, o prefeito acrescenta,"Nós três somos bem democráticos na nossa maneira de ser e agir. Mas acho que é uma mensagem, por exemplo, contra a legalização do aborto, contra a liberação das drogas ou a discussão de ideologia de gêneros nas escolas."
Conceito estranho de democracia. Pois se não discutirmos a ideologia de gênero nas escolas - assim como não a discutimos em casa- continuaremos sendo uma sociedade homofobica, tirando com isso aos homossexuais o direito democrático de viver em plena cidadania a sua orientação sexual.
Quanto ao aborto, a declaração de Crivella nos chega junto com a notícia de um parecer entregue ao Supremo Tribunal Federal por quatro relatores especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Diz o parecer que "negar o aborto legal a mulheres infectadas pelo vírus zika, e que desejam interromper a gravidez, pode ser uma forma de tortura".
Ainda em fevereiro deste ano, a ONU havia feito uma defesa enfática do direito ao aborto em caso de zika, e Zeid Al Hussein, Alto Comissário de Direitos Humanos, declarou que países atacados pelo vírus deviam permitir às mulheres o acesso ao aborto.
No Brasil gosta-se muito de encher a boca ao falar de "defesa da vida". A vida de quem, cara pálida? Nas questões que envolvem o aborto nunca há uma única vida a considerar, mas duas, a da mãe e a da criança.
Vejamos o caso específico da zika. A sociedade, entendida aqui como poder público, defende o direito ao nascimento da criança. As crianças, afinal, são - ou deveriam ser- um bem da sociedade. As mães, então, mesmo sabedoras de que darão à luz um bebê microcéfalo, são obrigadas a enfrentar a tortura - como bem reconhece a ONU- da gravidez e do parto. No Brasil, 1489 mulheres passaram - comprovadamente- por esse tormento, segundo contagem de junho deste ano.
E o que a sociedade faz, uma vez nascida a criança que tanto protegeu, mesmo sabendo que não teria chance de uma vida normal? Nada. Exatamente coisa alguma. Quem tem que fazer é a mãe. Sem assistência hospitalar adequada, sem meios de transporte apropriados, sem recursos e sem possibilidade de trabalhar, na maioria das vezes até sem assistência do marido que, diante de um filho microcéfalo, se vai.
Em setembro deste ano, a Advocacia Geral do Senado, encaminhou ao Supremo um parecer contrário ao aborto de mulheres infectadas pelo zika. Os advogados justificaram o parecer argumentando que "a repulsa ao aborto está profundamente arraigada na cultura brasileira".
Jogo de cena, senhores! Basta ver a estimativa do número de abortos realizados anualmente no país, entre 850 mil e 1,25 milhão. A repulsa fica arraigada em cima do tapete, os abortos são escondidos embaixo. E com essa encenação, nos consideramos moralmente superiores a tantos e tantos países civilizados onde o aborto legalizado acontece em situações bem mais humanas do que entre nós.