Marina Manda Lembranças L ento ou apenas preguiçoso, um rio de poucas águas escorre no leito, reverenciado pela copa de um chorão. E deb...
Marina Manda Lembranças
Tudo é sereno nesse mundo azul onde, junto ao chorão, uma dama de quimono lê o poema que o amado lhe enviou atado com uma fita e uma flor de glicínia. Tudo parece inalterável.
Mas, como o rio, o tempo também escorre, trazendo o inesperado. E eis que, de repente, a serenidade que parecia tão segura estremece por inteiro. Um som, uma pancada, e ponte, monge, carpa, chorão, garça, velhas, pagode, dama, são abalados, capotam, e giram, giram despencando em abismo, até se despedaçarem sobre o mármore.
O prato de porcelana caiu. Teria esvoejado o poema, se apenas estivesse escrito em papel. Agora, cacos jazem espalhados pelo chão. Em um deles, mínima mancha, a flor de glicínia.
Mas outros olhos além dos nossos viram a tragédia acontecer. Uma exclamação — ou fundo suspiro — acompanhou a queda. E logo, alguém se abaixa, duas mãos finas se estendem para recolher e reconhecer os cacos.
Um a um, são postos sobre uma superfície lisa, talvez tampo de mesa. Não são tantos quanto a altura da queda faria supor. É fácil reconhecer o espaço a que pertencem. E aos poucos, as mãos delicadas — certamente as mesmas que, num descuido, deixaram o prato cair — encostam um a um os fragmentos, recompondo o antigo desenho. O rio volta a deslizar. A garça perdeu a fome mas mantém a cabeça erguida — juncos ocultam a pata machucada. O monge foi protegido pelo guarda-chuva. As duas velhas continuam andando no antigo rumo, embora separadas do pavilhão pela queda. E a dama está inteira, o quimono composto, o penteado impecável, o poema ainda adoçando-lhe o olhar.
Um pouco de cola é passada nas beiras com um pincel, só o quanto baste para unir sem escorrer. Com precisão, os dedos aproximam os cacos respeitando a inclinação da louça, cuidando de casar linha com linha, azul com azul, para que não se note o desastre. E ali os mantêm, firmes, até que a emenda esteja consolidada.
Devagar como uma imagem que recua, o prato readquire sua antiga beleza. A vida que nele se vivia embora parada, recomeça. As personagens retomam suas antigas tarefas.
Mas a serenidade já não parece inalterável. Entre azul e azul, um risco mais fino que um fio de cabelo trai a presença da fenda. E através de uma fenda qualquer perigo pode se infiltrar.
Como uma personagem invisível, a vigilância habita agora o prato de louça. O futuro entrou em risco. As velhas temem jamais alcançar aquele mesmo pagode que antes parecia meta tão segura. O rio escorre ainda mais lento para não abandonar a ponte, em cuja sombra a carpa acordada está consciente da presença da garça. A dama continua lendo o poema, que a nova possibilidade de ser em algum momento esquecida pelo amado torna ainda mais tocante ao seu coração. Só a flor de glicínia, que sempre soube estar destinada a vida breve, emana, como antes, o seu perfume.