Marina Manda Lembranças D urante um certo tempo, obras. Depois o caminhão de mudança. E os novos vizinhos, que haviam comprado a casa há...
Marina Manda Lembranças
Um casal jovem e discreto. Ela estrangeira, ele mexe com cinema. Não os vemos, nunca havíamos nos falado. Viajam muito. Mas desta vez, quando chegamos com as filhas para comemorar o Natal como fazemos há mais de quarenta anos, o cachorro estava junto ao portão de ripas metálicas da casa deles.
Preto, discretamente peludo, porte médio. E sorridente como sabem ser sorridentes os cães, não mostrando os dentes, mas ao contrário, pela expressão do olhar, pelo aproximar-se, e pela intenção inicial de abanar o rabo.
Fomos falar com ele, que logo mostrou-se festeiro através das frestas. O dono, sorridente, apareceu na porta da casa, aproveitamos para nos cumprimentar e perguntar o nome do cão. "Tupã", disse o dono, e acrescentou que era ainda filhote.
Façamos um corte neste ponto da narrativa. Muita cozinha, muita champã no gelo, velas e mesa posta, flores, lareira acesa para criar o clima, ceia. E abrimos a cena no dia seguinte.
Dia seguinte, manhã de sol verdejante ainda molhada da chuva da noite, Affonso e eu subimos pelos caminhos que galgam a encosta do nosso terreno. Estávamos já quase no alto, quando o vi. Tupã havia tido a nossa mesma idéia, ou o nosso mesmo desejo, subindo até o alto do seu terreno. Sentado, quieto, olhava o mundo lá de cima. Talvez filosofasse.
Não o chamei. Inclinada para a frente, fiz com a boca aquele ruído com que nos endereçamos aos cães. Baixinho. Mas, na distância, que era muita, ele ouviu. Levantou-se e moveu de leve a cauda. Me inclinei mais, bati palmas só para ele ver, sem fazer barulho. Ele se sacudiu inteiro. E começamos a conversar, de um morro a outro, com um largo vazio pelo meio.
Não durou muito nossa conversa. Nem era para durar. Havíamos estendido no ar uma ponte de afeto, e isso nos bastou.
Como viaja o amor, assim sem palavras, só força de bem querer? Como se entendem duas criaturas tão diferentes, reconhecendo-se amigas desde o primeiro encontro? Naquela mesma montanha tive alguns maravilhosos cães visitantes, que não me pertenciam, que não moravam comigo nem eram cães de rua, mas que subiam a ladeira para me encontrar assim que ouviam o carro chegar. Nós nos amávamos.
Tento ter o mesmo diálogo com os pássaros e não consigo. Corto frutas para eles, que vêm comê-las mas me temem. Ponho água com açúcar para os beija-flores que só vêm bebê-la se não estou por perto. Azulões tomavam banho este fim de semana na piscininha feita para eles, mas só pude olhá-los à distância. Minha mensagem é postada e não chega, ou chega mas não é lida, ou é lida e não é aceita. E no entanto eu quero bem até aos morcegos que vêm à noite beber a água dos beija flores. E aos jacus que fogem quando me vêm, mal carregando com as asas seu singular peso.
Por que o recado do afeto só chega a algumas espécies? Há uma telefonia especial para isso? Ou seria um aplicativo que só alguns têm?
Porque não conheço as respostas, me arrisco, falo com plantas e animais, sorrio para as carpas do lago, para bois e cavalos, aliso serpentes, peço à barata que se retire. É provável que não lhes traga bem algum, que minha voz não lhes dê acolhimento. Mas faz bem a mim, esse sorrir quase sem resposta. E isto já é alguma coisa.