Marina Manda Lembranças N a escola para detentos, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, 300 se matriculam a cada ano...
Marina Manda Lembranças
Penso no poder de sedução das bibliotecas, sejam quais forem, ao ler que em Paris a sala Labrouste, da antiga Biblioteca Nacional, foi reinaugurada depois de anos de restauração. Um espaço que abrigará agora o acervo do Instituto Nacional de História da Arte. Colunas magras como pernas de cegonha sustentam cúpulas com clarabóias ao alto, e além dos arcos se entrevê o topo de árvores afrescadas sobre um céu azul, chamado da natureza derramando-se por cima dos livros. Que delícia há de ser pesquisar ali, nas mesas longas, sob a luz mansa das luminárias de opalina.
O mesmo clima de envolvimento, quase de sequestro desejado, habitava todas as bibliotecas em que estive ao longo da vida. Pode ser apenas o chamado do conhecimento, pode ser a certeza de que algo estritamente pessoal está contido entre lombadas, podem ser o silêncio e a procura.
Quando, ainda na década de 90, Affonso e eu visitamos a nova Biblioteca Nacional exigida por Mitterrand - que fez com que a antiga fosse praticamente abandonada- tivemos que tomar várias conduções, a linha de metrô que leva até lá ainda não havia sido completada. E que emoção, estar diante das quatro torres em feitio de livro aberto. Dentro, tudo era automatizado, tudo era de aço inox, tudo era moderníssimo. Pedimos os livros que nos interessavam, e nos sentamos, tímidos e assombrados como dois caipiras.
Em Dublin, a Biblioteca do Trinity College, é um dos principais tesouros da cidade. Em algum momento foi eleita a mais deslumbrante do mundo. Convidados para um almoço por ocasião de um evento de poesia, caminhamos debaixo daquelas arcadas de madeira em puro deslumbramento. Mas fere o coração visitar uma biblioteca sem poder permanecer, deixar-se ficar esquecido na penumbra, sozinho diante da luminosidade emitida por um livro aberto.
Cada qual tem sua biblioteca ideal. A do escritor espanhol Vila-Matas nunca foi construída, porque cabe em um bolso. Ele se refere a livros, escritos por vezes sem intenção premeditada, que constituem bibliotecas inteiras e podem ser levados ao alcance da mão, num bolso secreto ou no revés da manga. Para Dany Laferriere, da Academia Francesa, a melhor biblioteca da vida foi uma banheira cor de rosa, em que passou longo tempo deitado em água morna, lendo Montaigne, e em que reviveu a felicidade de quando habitava o ventre da mãe enquanto ela lia em voz alta perto da janela.
A minha biblioteca ideal não é aquela em que vivo, a da minha casa, caótica, aleatória, excessiva, em que os livros se empilham e nada se acha. É a que a vida me deu na infância, a biblioteca do meu avô Arduino Colasanti, historiador da arte, professor, e ele próprio autor de vários livros. Já a conheci transplantada, da villa que havia sido dele, para o apartamento da minha avó viúva. Mas as estantes eram as mesmas, e as lombadas de couro com as iniciais AC em dourado impregnavam a luz com a mesma cor. Sempre soube que não me era destinada, eu era só a menina da família, herdaria as jóias da avó, os livros teriam destino mais nobre. Mas era eu que abria a porta lentamente e entrava quase na ponta dos pés para não perturbar o eloquente silêncio dos livros. Era eu que, à noite, recebia permissão para sentar na cadeira pequena e ler. E fui eu que, afinal, fiquei com ela entranhada em mim, mais vívida do que se a tivesse herdado.