Marina Manda Lembranças N ão interessa se você gosta de carne mal passada, bem passada ou ao ponto, em qualquer das opções está fora da mo...

Marina Manda Lembranças
É assim que se chama aquilo que se aproxima da podridão sem entretanto alcançá-la plenamente. Uma carne maturada de qualidade superior pode ter sido abatida há 75 dias, sem ter nunca frequentado o congelador. Só uma câmara fria especial, para fazer com que fique macia, absorva a gordura, adquirindo um sabor outro, mais declarado, ligeiramente açucarado e próximo da avelã.
Lembro quando meu pai me dizia que as aves abatidas numa caçada ficavam infinitamente melhores se "faisandés". A maneira de saber o ponto certo era simples: pendurava-se pelo bico a ave morta, e quando o corpo se desprendesse era a hora de comer. Criança, eu ouvia essa narrativa acreditando e sem acreditar. Mas, tantos anos mais tarde, passando na França pelos açougues de caça, busquei com o olhar entre os javalis pendentes alguma ave presa pelo bico.
Não vá você agora maturar em sua casa da serra a picanha do churrasco. Nem qualquer carne serve, nem qualquer temperatura. A maturação, como Deus, está nos detalhes. Só a parte posterior do bicho, onde habita a gordura, é que interessa. E só as partes coroadas, as mais nobres.
Quanto ao tempo, é um mistério que os especialistas aperfeiçoam a cada peça. Podem ser alguns dias, ou quarenta, ou cem, dependendo da idade do animal e da quantidade de gordura que conseguiu acumular. Se fossem, por exemplo, alguns dos zebus magros que vejo nos pastos passando rumo à montanha, cinco minutos já seriam demais.
Mas é claro que zebus não são estrelas gastronômicas. O que se quer no prato são raças especiais - de preferência inglesas - e especialmente bem alimentadas. Não tenho confirmação desse dado, mas breve saberemos que a melhor carne maturada se origina de gado alimentado com pasto biológico e ração sem glúten.
Justifica-se com isso o preço significativo. Um quilo de carne angus maturada durante sessenta dias custa, em Paris 75 euros. E parece até barata se pensarmos que um entrecote black market da Austrália, que só esperou quarenta dias para ser grelhada, custa 69 euros.
Tudo começou no começo dos anos 90 quando um açougueiro francês, hoje vedete máxima da maturação, começou a imitar o que havia visto nos países anglo-saxônicos, onde as carcaças passavam dias e dias penduradas no açougue, fora das câmara frigoríficas. Assim como a carne maturada, o açougueiro levou um bom tempo para impor sua técnica.
Que em breve há de chegar ao Brasil, como tudo chega. Teremos então que suportar a dupla demonstração à mesa, primeiro a longa demora na escolha do vinho, taça girando na palma, cheiradinha básica, gole ligeiro para testar a qualidade, depois inquirição ao maitre, quantos dias de maturação, que parte da criatura, que idade, que porcentagem de gordura. Tudo arrematado ao final pela cara de êxtase.
O que os franceses não sabem, é que no Brasil o consumo de carne faisandé, ou quase, é coisa antiga e costumeira. Nem é preciso ir até Brasília. Basta entrar em qualquer palácio de governo estadual, em qualquer prefeitura para ver como políticos se comem uns aos outros.