Marina Manda Lembranças P assei os Ășltimos dias lendo "SilĂȘncio" do japonĂȘs Shusaku Endo. O filme ainda nĂŁo vi, e nem sei se v...
Marina Manda Lembranças
NĂŁo Ă© um livro para se ler levemente. Nem Ă© livro de uma Ășnica porta. Martin Scorzese, que o releu "incontĂĄveis vezes" durante vinte anos antes de adaptĂĄ-lo para o cinema, e que fez o prefĂĄcio para esta edição, Ă© atraĂdo pela questĂŁo da fĂ© que colide com o silĂȘncio de Deus, e pela figura de Judas que pode ter desempenhado um papel indispensĂĄvel ao crescimento do cristianismo.
Mas este romance, tecido de ficção e realidade, nos traz tambĂ©m o enfrentamento de duas culturas milenares, lutando nĂŁo sĂł pela sua preservação, como por sua afirmação de superioridade. E nos diz da importĂąncia do comĂ©rcio como elemento de pressĂŁo entre os povos e como agente modificador. Fala de guerra religiosa mascarando interesses bem terreais. E desenha uma realidade de pobres submissos e senhores arrogantes, semelhante Ă que ainda se vive em tantos paĂses.
Suspeito que Endo tivesse, desde criança, um pesado sentimento de descentração, de nĂŁo pertencimento. Pouco depois do seu nascimento no JapĂŁo, a famĂlia mudou-se para a Mandchuria, e ali ficou durante cerca de dez anos, atĂ© o divĂłrcio dos pais. Com a divisĂŁo familiar Endo volta ao JapĂŁo com a mĂŁe, indo morar com uma tia. E logo Ă© batizado cristĂŁo. Ou seja, durante dez anos foi mandchu sem sĂȘ-lo, jĂĄ que era japonĂȘs, e na volta ao paĂs natal certamente nĂŁo se sentiu como um local, jĂĄ que havia sido mandchu, diferença ampliada pelo batismo que o tornava cristĂŁo em um paĂs budista. Desde o inĂcio, Endo esteve fora e dentro do seu entorno. Para agravar a questĂŁo, ou para concretizĂĄ-la, logo depois da Segunda Guerra Mundial foi terminar seus estudos em Paris. JaponĂȘs depois do duro enfrentamento da guerra, era inevitĂĄvel que sofresse preconceitos raciais.
DepressĂŁo e repetidos problemas pulmonares terminando em tuberculose o mantiveram no hospital durante mais de dois anos. Como o padre SebastiĂŁo Rodrigues, protagonista de "SilĂȘncio”, Endo deve ter esbarrado no silĂȘncio de Deus, no pleno abandono. Doente, deprimido, sentindo-se rechaçado, hĂĄ de ter perguntando a Deus a razĂŁo do sofrimento. E Deus, mudo.
InĂșmeras vezes, conforme estĂĄ nos seus livros, questionou sua fĂ©. Como disse em uma entrevista: "Fui batizado quando menino[...] em outras palavras, o meu catolicismo era uma espĂ©cie de terno comprado jĂĄ pronto[...] Precisei decidir se ia fazer esse terno me servir ou se ia me livrar dele e arranjar outro, que me servisse [...] Muitas vezes desejei me livrar do meu catolicismo, mas acabava nĂŁo conseguindo".
O terno comprado pronto o vestiu quando ele mais despido se sentia, estranho num JapĂŁo que nĂŁo conhecia, sem o pai, com a famĂlia desfeita. Podemos crer que lhe serviu como uma identidade. Livrar-se dele, adiante, o deixaria novamente nu, quase despelado. E o tornaria um traidor. Era exigir muito de si prĂłprio.
Comecei falando do livro porque me interessava fazer um paralelo com a repressĂŁo e o fanatismo religioso que nos assolam em plena modernidade. Mas acabei seduzida pelo paralelo entre autor e personagem. Como disse no inĂcio, este Ă© um livro de muitas portas.