Marina Manda Lembranças N ão sei quando, pela primeira vez, fui convidada à Feira do Livro de Fortaleza. Certamente, isso aconteceu há m...
Marina Manda Lembranças
Estou voltando de lá. A XII Bienal Internacional do Livro do Ceará foi inaugurada em casa nova, o imenso Centro de Eventos da cidade. E estava concorridíssima. Multidões, como em qualquer bienal do Rio ou São Paulo, circulando — e comprando! — entre os estandes, e mais, auditórios lotados para os encontros com os autores.
É de um desses encontros que quero falar. Fui ouvir Valter Hugo Mãe. O tema proposto era: Somos todos filhos de mil pessoas e mil livros. Mas temas podem ser apenas ponto de ignição, para ligar o pensamento.
É um homem bonito, Valter, e tem aquela gentileza lusitana que sempre nos reconforta. Começou pedindo desculpas por estar de havaianas e não de sapatos, pois tendo vindo à Bienal para inteirar-se dos livros, não havia tido tempo de voltar ao hotel e trocar de calçado. Não tivesse falado nisso, ninguém teria reparado, ou se reparassem considerariam uma rápida aderência aos hábitos nacionais.
Bastou essa mínima entrada, e logo Valter abandonou a amenidade para falar de carne viva. Assim ele nos contou.
Gravava sobre a família, antes dele nascer, a recente morte de um irmão. E este pequeno morto onipresente lhe coube como um destino. Havia que amá-lo. Mas como amar uma ausência, alguém que nunca se conheceu e de quem parece impossível ter saudade? Um irmão vivo e presente é um companheiro de jogos, aventuras e brigas. Um irmão morto e jamais visto só pode ser companheiro da solidão.
Valter foi desde a primeira infância um solitário. Ao contrário de tantas crianças solitárias que inventam um amigo imaginário, nem isso ele podia fazer, pois já tinha o irmão. Mas, se os amigos imaginários correspondem ao nosso desejo de um amigo e são criados para atender nossas preferências, Valter havia recebido o seu já pronto, atado a ele somente pelo sobrenome, e desenhado mais pelos pais do que por seu próprio desejo.
Tudo na vida de Valter foi um desejo de preencher esse vazio. A casa dele não tem uma única parede branca e nua, não tem um único móvel de superfície despida, nenhum espaço livre. É uma casa cheia de objetos, cheia de livros, cheia de quadros, cheia de móveis, cheia, cheia, cheia. Livros, objetos, quadros, são mais do que apenas isso, são lembranças, presentes, evocações de pessoas e de momentos. São a companhia possível, ponte estendida entre presença e ausência, entre a vida e a não vida.
Ouvindo a voz de Valter, havia em mim um eco. Era a voz do meu tio, irmão caçula do meu pai. Ele também havia nascido depois da morte de um irmão menino. E sempre considerou-se apenas uma peça de reposição, não um filho desejado, mas aquele que vinha recompor a imagem do morto, ocupar o lugar à mesa para que não ficasse vazio. Não creio que se esforçasse para amar o desaparecido, era mais um ressentimento por ele ter morrido, obrigando-o a nascer. Também a casa do meu tio era cheia de livros, objetos, coleções, antiguidades, sem que ele tivesse, como Valter, a clara noção do que isso significava. Quando morreu, sem deixar filhos, tudo foi leiloado pela Sotheby's. Valter, ao contrário, sabe que tudo o que junta ao seu redor, só com ele dialoga.