Marina Manda Lembranças D e repente, sem qualquer estremecimento sísmico que o fizesse prever, meu computador entrou em erupção. Como la...
Marina Manda Lembranças
Me vejo em pleno Poltergeist. As mensagens da amiga que morreu no ano passado me chegam como se do além, ela me contando que a sua saúde melhorava, me dando notícias da horta que mantinha na casa da serra. E as fotos tantas, de festas e viagens, de aniversários já superados, de bebês que já cresceram, de pessoas que já esqueci voltam a sorrir para mim. Até agora, só consegui apagar 3 mil mensagens, de cima para baixo, e estou em 1915!
Não devo parar. Se paro, dando descanso à mão, acabo lendo. E, lendo, apagar as mensagens se torna melancólico como se apagasse a vida. Os convites para congressos, a correspondência profissional, as tratativas editoriais de livros que agora estão na estante, os pedidos de entrevistas ultrapassadas, as passagens para as viagens todas que fiz nestes anos voltam na tela à minha frente. E a correspondência pessoal, as mensagens de amizade com que vencemos a distância refluem do tempo. As folhas das árvores caídas na calçada ou na grama não retomam seu lugar nos galhos, a natureza não trapaceia.
Enfrento um fenômeno pessoal, mas penso no coletivo. Se as mensagens que eu considerava apagadas não o foram, se continuavam guardadas em algum canto oculto, poderiam perfeitamente morder ao anzol de um pescador informático que se dispusesse a buscá-las. As minhas, como as de qualquer um. O que antes era íntimo e passageiro tornou-se reciclável como carro velho.
Quando o Visconde de Valmont recebia uma carta da Marquesa de Merteuil, tratava de rasgá-la. Eram ligações perigosas. E quando a Marquesa recebia missiva do Visconde, queimava-a depois de ler. Assim era no século XVIII. E assim continuou até ontem. Vimos tantos filmes em que a esposa infiel queimava a carta do amante e abria a janela para que o marido não percebesse o cheiro. Agora não há o que queimar. As novas palavras, que não existem fisicamente, que viajam sem portador e sem papel, recusam-se a morrer.
Poderia refazer minha agenda, as datas marcadas, os endereços, a hora dos compromissos, tudo está disponível. Porém, se eu fosse àquele encontro para dar aquela palestra não haveria ninguém me esperando, nem na porta, nem no auditório vazio. A ampulheta só se inverteu para mim, a areia que correu é aquela que já havia escorrido entre meus dedos.
Carlos Drummond, mineiro prudente, rasgava à noite os rascunhos dos poemas que havia feito de dia, melhor ainda, tinha uma daquelas máquinas de picotar papel. Sabia que, se apenas rasgasse, alguém poderia chegar-se ao lixo para se apoderar dos preciosos fragmentos. Não eram tempos de computador. Hoje não haveria como desfazer-se do que não mais lhe servia. Como as minhas mensagens, tudo estaria guardado em alguma fenda secreta ou em alguma nuvem à disposição do hacker que o quisesse.
Hoje estive ocupada, ainda não deletei minha ração do dia. Mas temo que quando terminar, já com calo no dedo, as entranhas do meu computador gargalhem, prontas a vomitar tudo de novo no meu colo.