Marina Manda Lembranças T udo com que nos acenam é em excesso. Tudo é demais. E disfarçado em oferta, nos exige, nos pressiona, por mome...
Marina Manda Lembranças
Olho ao meu redor. Minha mesa é um acúmulo de papéis e livros e recibos e envelopes ainda fechados. São livros que preciso ler, que acabei de comprar, e livros de amigos brilhantes, e livros de longa deglutição que venho lendo aos poucos. Camadas geológicas do meu fazer, em que material de referência para algo que terei de escrever com data marcada jaz debaixo de uma nota fiscal a arquivar e acima de um caderno de apontamentos. Ah, sim, vejo num canto duas pilhas mortas que por dever ecológico não me atrevo a jogar em qualquer lixo e que por esquecimento esqueço de levar até a portaria do edifício onde está o lixo correto. E um carretel que comprei e tirei da bolsa, e um tubo de tinta.
Fui comprar presente para o Dia da Mãe. Que multidão. E quanta, quanta roupa nos cabides todos das lojas todas de todos os bairros. Uma loja de roupa ao lado de outra loja de roupa, e todas as roupas parecidas como se iguais, as roupas todas sendo uma única roupa que as variantes não alteram. Tudo é o mesmo. O diferente pouco se oferece, porque o diferente pouco vende, as pessoas todas querendo o semelhante para se sentirem aceitas e igualadas através da semelhança.
Inaugurou um novo supermercado no bairro. Fila na porta, amasso lá dentro. E as prateleiras regurgitando latas, garrafas, embalagens. Todas as semanas faço compras, não procuro, levo lista, vou direto ao produto que prefiro, desprezando todos os demais, que são demasiados, sempre demasiados. Mas ao mercado que não tem variedade excessiva não vou, porque o direito ao excesso tornou-se sagrado.
Vi na TV todo o debate entre os dois candidatos à presidência da França, sei a opinião de cinco escritores importantes sobre os candidatos, li na revista toda a biografia de Kim Jong-un e fiquei sabendo que o ditador, além de gostar de iates e champagne, acabou de lançar um concurso nacional a fim de encontrar um marido para sua irmã Kim Yo-jong. Eu precisava mesmo saber disso?
Acumulo dados de que não necessito e esqueço coisas que me seriam úteis. A capacidade de armazenamento do meu cérebro é muito inferior ao que se quer enfiar nele. Sei que 70% dos habitantes da Venezuela vivem em favelas e que o Brasil tem mais de 3000 lixões irregulares, mas o nome daquela atriz que todos conhecem e de quem já vi tantos filmes desapareceu. Daqui a alguns dias terei esquecido a quantidade de lixões e a porcentagem de favelados venezuelanos, mas é provável que o nome da atriz reapareça na minha memória. Ah!, quantos poemas que sabia de cor e me faziam companhia, que eram meu repertório e meu refúgio, quantos poemas insubstituíveis perdi ao longo do caminho.
Quantos aplicativos devemos ter para nos sentirmos seguros em meio à insegurança? Em que momento nos é permitido desligar o celular? Existe, para ele, lugar mais adequado do que a palma da mão? E o que, no todo do cotidiano, podemos não fotografar?
Quando criança, tinha medo das areias movediças que devoravam vilões nos filmes de Tarzan. Agora tenho medo das redes sociais que tragam o tempo, e dos excessos que tragam o caráter.
Ilustrações:
1 - Pawel Kuczynski
2 - Jean Jullien
1 - Pawel Kuczynski
2 - Jean Jullien