Marina Manda Lembranças J á está a nosso alcance a casa inteligente que tudo facilita. Acabou a necessidade de abrir cortinas, basta pro...
Marina Manda Lembranças
Perdeu a chave? Nunca mais! A porta da casa se abre pela impressão digital dos seus habitantes. Esqueceu a receita daquele prato? Impossível! o fogão permite baixar receitas pela internet, e um aplicativo no celular programa o forno para realizá-las automaticamente. Anoiteceu e você que estava diante do computador não se deu conta? Esquece! As luzes acendem automaticamente. Frio nos pés? Acabou! A cama os aquece sozinha, e também cede, obediente, quanto você se vira no sono.
Isso, e alguma outra coisa que certamente esqueci, é para o futuro imediato. Novos implementos virão depois.
Olho a casa inteligente estampada na página do jornal, destacados em vermelho os pontos da automação. E não a quero.
Abrir as cortinas do meu quarto ao levantar é um gesto que inaugura a manhã. O mesmo que a minha mãe fazia quando eu era criança. Afasto as cortinas para receber a luz, olho as montanhas, estudo o céu e suas nuvens, rego meus gerânios na beira da janela. E o dia começa.
Desde a adolescência copio e junto receitas. Toda noite cozinho. Vou ao fogão com bibliografia e prazer. A buscar uma receita na internet e mandar o fogão prepará-la automaticamente, prefiro comprar comida pronta ou ir a um restaurante. Cozinhar não é apenas uma sequência de gestos, é um seguir-se de escolhas, uma doação, uma cerimônia em que se transformam e se combinam elementos, para criar um produto que abençoará a mesa.
E chegamos aos gestos. Os gestos, os gestos todos que a automação está dispensando, têm mais funções além daquela imediata. Fazer uma cama não é só esticar lençóis e cobertas. É um exercício completo com que as donas de casa do passado substituíam a academia do presente.
E não se trata apenas de exercício muscular. O cérebro também é convocado para lembrar a sequencia certa dos gestos, a sua finalidade. Guardo louça no armário, e meu cérebro me diz qual o lugar de cada item, qual o uso, qual a ordem, qual a coisa seguinte a fazer no preciso encadeamento com que se processa o asseio da cozinha. A atividade aparentemente insignificante põe em ação todo o conjunto-corpo.
E os gestos são lembranças de gestos anteriores, nossos e alheios, são parte do repertório gestual que amealhamos ao longo da vida.
Inventaram os carros, deixamos de caminhar, passamos a correr em esteiras. Se eliminarem nossos gestos domésticos, se aplastarem nossas escolhas, se não precisarmos mais lembrar o que fizemos no dia anterior, para podermos achar as chaves, que exercício mental poremos em seu lugar?