Marina Manda Lembranças V indo de carro por uma estrada de terra vi o cavaleiro à frente, contendo o cavalo para nos dar passagem. Não e...
Marina Manda Lembranças
Bastou olhá-lo, para rever meu pai. Sempre gostou de montar, Manfredo Colasanti. Montava na África, quando lá vivemos, há fotos dele caçando, com calças de montaria. E voltou a montar assim que chegou ao Brasil — na Itália, durante os longos anos da guerra, ninguém pensou em hipismo, e meu pai teve que se contentar com uma bicicleta.
Dois cavalos, estacionados na Hípica. A Hípica sendo diante do Parque Lage, casa da minha família, Manfredo só precisava atravessar a rua para ir ter com Alalá, o branco de que nunca gostei, e Tibají, o preto imponente.
Um clube simpático, a Hípica daquela época, com um ar despretensioso, mais esportivo que social. Guardo até hoje a carteirinha de sócia da minha mãe. Os anos 50 nem haviam começado, e ir assistir concursos hípicos parecia um bom programa. Era comum ver cavaleiros aos pares ou sozinhos dando a volta da Lagoa — ninguém os assaltaria para roubar cavalos naquela época em que não havia assaltos. Várias vezes Manfredo fez esse percurso, mas gostava mais, ou me falou mais disso, de ir com Roberto Marinho — que mais tarde viria a comprar o Parque Lage, e essa é outra história — pela Rua Jardim Botânico, que tinha bonde e pouquíssimo trânsito, até Ponte de Tábuas, e dali subir pela Castorina até alcançar em plena Floresta da Tijuca a sede "campestre"da Hípica. Era um belo passeio, alimentado por uma parada no apertado pé sujo de Ponte de Táboas, romanticamente chamado Cú de Fora, e por outra parada com gim-tônica na sede. Não me foi contado se Roberto Marinho se entregava a essas libações, mas Manfredo certamente sim.
Adiante, desconheço os motivos, se uma sábia redução de despesas ou se a praticidade evidente, Manfredo tirou seus dois cavalos da Hípica e os transferiu para as cocheiras do Parque. Não confundir com as atuais "cavalariças", denominação totalmente arbitrária já que ali nunca habitaram cavalos, e sim os empregados do jardim. As cocheiras que acolheram Tibají e Alalá haviam sido concebidas para vacas. Quando cheguei, na parte extrema do parque junto à Jadim Botânico, além do segundo portão, pastava uma vaca destinada a fornecer leite de qualidade para as crianças da família.
Acabado o tempo da vaca, vieram os cavalos. Que necessitavam de exercício.
E eis que uma tarde, na quadra de tênis que nunca vi usada para o seu fim, Arduino e eu olhávamos Manfredo que, com uma longa fita de couro exercitava Tibají, fazendo-o trotar em círculo ao seu redor. Nosso olhar de admiração deve ter dado a ideia ao meu pai. Parou o cavalo e nos perguntou se queríamos montar.
Sem sela e sem estribo, montamos os dois juntos ajudados por ele. Que logo deu um estalo com a boca, sinal para o cavalo retomar o trote. Melhor teria sido um sinal para ir a passo. Era tão alto aquele cavalo para minha pequena estatura! O bravo Tibají não teve tempo de avançar muito, e já Arduino e eu despencávamos sobre o chão sem grama da quadra. Nenhum dos dois se machucou. Meu pai não repetiu a tentativa. Mas guardei para sempre aquele momento de cúmplice molecagem de nós três. Ou melhor, de nós quatro.