Marina Manda Lembranças Q uantas vezes e de quantas maneiras uma pessoa tem que ser assaltada para manter sua identidade brasileira? D...
Marina Manda Lembranças
Dona de casa cumpridora, vinha eu atravessando a rua, de volta do supermercado. Rua de muito movimento e mão única, o que me obrigava a olhar na direção dos carros. Nem o vi. Senti a garra no meu pescoço, as unhas na pele. Um ciclista bem apessoado, bem vestido, claro, de boné. Um assaltante. Como ele soube que, por baixo da camisa de colarinho, por baixo da malha de gola careca que mantinha o colarinho fechado, por baixo de um casaco e sua gola, eu levava uma correntinha micra, de ouro vagabundo, comprada na adolescência e agora desencavada para pendurar um antigo e pequeno botão da Sardenha? Ou nem soube, e buscou o pescoço só por achar que eu tinha cara de enjoiada?
Não levou nada, além do meu desprezo. Ainda voltou-se para trás, depois pedalou à caça de outra presa.
Eu era jovem jornalista e andava pela rua do Ouvidor quando um transeunte tocou meu braço e denunciou: aquele sujeito lá atrás bateu sua carteira. Nem pensei. Saí correndo, ele correndo à frente, mas menos rápido para não se denunciar. Assim que o alcancei e pus a mão no seu ombro parou."Tudo bem, eu devolvo"disse. E me entregou a carteira.
Eu continuava jornalista e havia acabado de receber o meu salário. Já era mãe, minha filha pequena dormia no seu próprio quarto, ao lado do meu, portas abertas. Acordei, me arrumei para ir ao trabalho, mas quando procurei minha bolsa não achei. "Você pegou a bolsa da mamãe para brincar?"perguntei com carinho, ainda sem desconfiar. Não tinha pego. Mais um tanto de procura, e a bolsa foi achada do terraço, a carteira sobre a mesa, os documentos espalhados, nenhum dinheiro mais. Uma marca preta de mão acima do basculante da sala me disse por onde o assaltante tinha entrado e a vizinha da cobertura dos fundos completou o mapa, o assaltante vindo da obra ao lado havia passado pelo telhado dela, sem parar porque a luz estava acesa.
Eu já não era tão jovem mas ainda jornalista. Estava indo de carro para a então TVE. Parei obedecendo ao sinal. O menininho aproximou-se. "Tia", vinha dizendo com voz lacrimosa como quem vai pedir uma esmola ou vender alguma coisa de que a gente não precisa. Mas a voz mudou, e a atitude, quando chegou junto ao meu rosto o caco de vidro que trazia escondido, e grunhiu "Passa o dinheiro!".
Eu já era free, e aproveitava as horas disponíveis entre as tarefas para ir ao supermercado. Nem senti. Mas em algum momento, enquanto debruçada entre outros clientes avaliava frutas, alguém botou a mão na minha bolsa e levou a carteira. Só percebi chegando à caixa. Os documentos foram jogados dia seguinte diante da porta da farmácia, metidos num saco de papel. Ainda não era tempo de cartões de crédito.
Houve um ponto em que recebi uma herança importante, mais importante ainda frente aos meus modestos ganhos jornalísticos. Não gastei um tostão, comprei um apartamento e apliquei em ações o restante. Em ações da Dominium, empresa de café solúvel. Que faliu, engolindo todo o dinheiro dos seus pequenos acionistas. Estávamos em plena ditadura, os militares fizeram uma intervenção. Ninguém foi preso, dinheiro nunca se viu. Posso dizer que esse foi um assalto a mão armada.
Continuo sendo jornalista, e por isso narrei os meus assaltos. Porque assaltos seguidos não constituem uma biografia, traçam o retrato de um país. Um país que continua nos assaltando das mais variadas maneiras, e que queremos, queremos muito mudar.