Marina Manda Lembranças V i a múmia passar pelo tomógrafo, deitada e imóvel como um ser humano vivo. A múmia de uma menina de 12 anos — ...
Marina Manda Lembranças
E o que havia dentro dela?
Jovens da minha geração não se fariam essa pergunta. Havíamos lido "Sinhue o egípcio" do finlandês Mika Waltari, e sabíamos tudo sobre mumificação, a retirada dos orgãos, as sucessivas limpezas do invólucro morto, o silêncio e o cheiro igualmente pesados da casa da morte. Dentro de uma múmia, sabíamos perfeitamente, não há nada. Se tanto, como no caso da menina que foi devolvida a seu sono no Museu Nacional, mais metros e metros de pano.
Outra vida têm as múmias de Fayum, sobre as quais me atardei mais de uma vez na seção egípcia do Louvre. Fayum, no Egito, é uma depressão fértil a 60 km do Cairo, um verdadeiro oásis que produz tâmaras, linho, algodão, frutas, cereais, e que na época da dominação romana do Egito, sob a influência da capital Alexandria e devido à presença de grande colônia grega, havia-se tornado um grande centro de cultura e arte greco-romana. As múmias são a clara fusão de culturas sobrepostas.
Do Egito, mantinha-se a exigência religiosa da mumificação. Mas uma nova forma de identificação foi acrescentada . Sobre a parte da cabeça correspondente ao rosto, embutia-se nas bandagens um retrato do morto. Talvez a intenção fosse facilitar à alma o encontro com seu próprio corpo na vida pós mortem. O fato é que os retratos não se destinavam à apreciação de terceiros, permaneciam ocultos. E a isso devemos sua perfeita conservação.
Descobertos por um explorador italiano em 1625, os retratos de Fayum não têm qualquer vestígio da arte egípcia, são puramente greco-romanos e, buscando o indivíduo, retratam com precisão o momento histórico de uma sociedade.
São painéis de madeira, pintados a têmpera ou encáustica, tamanho natural. Em algum momento li que eram encomendados no vigor da vida, e de fato não há — ou pelo menos nunca vi — retratos de velhos, embora haja vários de crianças. Penso nos sentimentos de quem contratava o artista, vestia seus mais belos linhos ou punha suas mais ricas jóias, penteava-se com esmero, e se punha imóvel, posando de frente para a escuridão e para a morte. O que sempre me impressiona nesses retratos é o olhar. Sério, denso, cheio de vida mas sem sorriso, um olhar que encara e não hesita.
Tive um amigo que fez seu retrato de Fayum. Não sei se já tinha diagnóstico de câncer, mas em certo ponto da vida, calculando que estaria próxima de acabar, Fernando Sabino recolheu-se para organizar seu retrato. Foi ele mesmo que nos contou, uma tarde em que veio aqui em casa. Estava revendo todos os seus papéis, organizando todos os seus escritos, rasgando coisas. Não queria ter surpresas depois da morte, com a publicação de textos sem sua prévia autorização. Um escritor pinta com palavras, nem têmpera nem encáustica. E as palavras de um escritor são o seu retrato. O de Fernando, felizmente, não ficou oculto.