Marina Manda Lembranças N ão me canso de repetir — embora os leitores provavelmente se cansem de ler — que qualquer narrativa pertence a...
Marina Manda Lembranças
Esta semana, por exemplo, tropecei na nova versão cinematográfica de "A Bela e a Fera", que vi com certa intimidade já que Vincent Cassel, carioca recente, era a Fera.
A Bela e a Fera não é um conto qualquer. Se eu já desconfiava disso, pude confirmá-lo graças a um livro precioso que ganhei de presente, "Beauty and the Beast, Classic Tales About Animal Brides and Grooms from Around the World". Compilado por Maria Tatar, professora de Folclore, Mitologia, Língua e Literatura alemã em Harvard, e autora de sucesso, o livro nos diz da antiguidade das narrativas de amor e acasalamento entre humanos e animais. E as classifica como possibilidades de relação entre nós e o outro, em que a ferocidade emocional se funde com a sedução, levando-nos a um reencontro simbólico com nosso eu animal, com nossas origens.
A série de contos selecionados por Tatar começa com a mitologia grega, quando Zeus, transformando-se em touro para não ser reconhecido — era casado com Hera — sequestra mar adentro a donzela Europa, que imprudentemente havia sentado no seu dorso. E segue com contos de um noivo macaco, um príncipe serpente, uma donzela rã, um homem que casa com um urso, uma moça que casa com um cachorro, outra que escolhe um homem-hiena, e um príncipe porco — do autor italiano Straparola — que chega a casar três vezes, com três irmãs. São 37 contos de todos os cantos do mundo e de tempos longínquos. Mas dei falta do nosso Boto amazônico, que sob aparência de jovem garboso engravida as moças ribeirinhas, com seu consentimento.
Comparado a esses, o conto que conhecemos é quase moderno. A primeira versão, mais de cem páginas, foi escrita em 1740 por Gabrielle-Suzanne de Villeneuve, e retomada com grandes cortes em 1756 por Jeanne-Marie de Beaumont. Duas mulheres letradas que certamente conheciam um tanto de mitologia e de folclore.
O filme de Cassel, perdão, de Christophe Gans, nos fala mais de uma nova mitologia hollywoodiana, do que de herança cultural. Há uma Bela, e há uma Fera, mas o que se quer oferecer acima de tudo são efeitos especiais/aventura/ação e a inevitável luta pelo poder. Para isso, foram acrescentados à história gigantes saídos não se sabe de onde, um malfeitor cobiçoso aliado a uma cigana feiticeira comandando um bando de ladrões, e tentáculos serpentinos que tudo invadem destroçando cenários e personagem com igual facilidade (os mesmos, aliás, que vi em outro filme do mesmo tipo, "João e Maria caçadores de bruxas", o que me faz crer em uma moda de tentáculos).
O amor sofrido entre a moça virtuosa e o ser apavorante sai de foco, perdido em meio a tantos outros enfrentamentos. Longe, muito longe, estamos da esplêndida versão cinematográfica de Jean Cocteau, que vi na adolescência e nunca mais esqueci. Ali, tudo era poético, tudo remetia ao imaginário. Para obter o clima preciso que buscava, Cocteau inspirou-se nas gravuras de Gustave Doré, imbatível ilustrador de contos de fadas, e pediu a Lanvin que fizesse os figurinos. Deste filme perpetua-se o visual felino da Fera, vivido então pelo belo Jean Marais, e repetido agora por Cassel.
Dou um palpite ousado: na mitologia de A Bela e a Fera incluiria "Alien" como contribuição da modernidade. De acordo com os novos tempos, sem amor mas certamente seduzido e levado por sonho de poder, a Fera intergaláctica engravida a Bela astronauta Sigourney Weaver.