Marina Manda Lembranças E le conversa com as pedras. E coleciona seixos de rio. Bez Batti é o nome. Bez Batti, escultor. Reconheci a ca...

Marina Manda Lembranças
Reconheci a casa/atelier antes mesmo do carro parar. Já havia estado ali há alguns anos, em minha primeira ida a Caxias do Sul, e não é lugar que se esqueça. Quase na beira da estradinha magra, sem cerca ou muro, rodeada de capim alto mais campo que jardim está a casa branca, de janelas generosas e pequena pérgula florida de viuvinha. Duas presenças nos recebem ainda lá fora, o próprio Batti de braços abertos, e a grande escultura de pedra gasta ao meio por língua ou vento que, saberemos depois, exigiu oito anos de trabalho.
Menino, Batti ia com a mãe para a beira do Rio Taquari. A mãe lavava roupa, ele brincava com o que tinha à mão. E à mão tinha seixos. Rolados, lisos, macios sob seus dedos de criança. Ele os manuseava dando-lhes nova ordem, e conversava com eles como qualquer criança conversa com seus brinquedos. Os mais bonitos escondia no mato para ter certeza de encontrá-los no dia seguinte. Os menores guardava nos bolsos. Menino e seixos estabeleceram a relação indissolúvel que perdura até hoje.
A sala maior da casa de Batti e da sua esposa é uma galeria de arte com cristaleira, o doméstico entrelaçado à profissão. E a luz entornada pelas janelas conhece seu ofício, sabe como dar ênfase ao relevo das esculturas grandes e pequenas que se multiplicam naquele espaço.
Há pedras que ganham pontas transformando-se em cactus, há pedras que ganham rosto e se tornam humanas, há pedras que como fruta mantêm a casca áspera e só no corte preciso revelam sua polpa. Todas elas exercem poder de atração, parece imperativo acariciá-las, percorrer com a mão os mesmos caminhos percorridos por ferramentas que imaginamos macias como água. E o contato se revela morno e prazeroso, como se de outra pele.
Algumas cantam. Batti nos conta que descobriu a voz das pedras ainda na infância. Era garoto, e ao passar a mão rapidamente sobre alguns seixos, ouviu um som. Olhou melhor, havia um furo no seixo. Era o ar empurrado nesse furo pela mão, que gerava a resposta sonora. Hoje, Batti faz em algumas de suas esculturas furos exatamente iguais àquele primeiro, e lhes dá voz.
O atelier é cheio de surpresas. Olho uma pedra redonda, cortada quase ao meio, rude por fora como em origem, misteriosa no corte polido feito pelo escultor. É uma ágata. A mancha clara, no meio do corte, parece uma galáxia em céu escuro, uma entidade estrelar. Mas é mais misteriosa do que isso. Batti pega a pedra e a sacode, a galáxia se move. É uma bolha de água há séculos aprisionada no coração da pedra. Outra apresenta o mesmo fenômeno. Admiro a perfeição do corte que alcançou a transparência sem deixar vazar o conteúdo. E em silêncio me pergunto quantas das pedras que pisei na vida ou que apenas vi continham, sem que eu soubesse, semelhante tesouro.
Na sala menor, a íntima sala do casal, a mesma em que na minha outra visita tomei café, está a coleção de seixos de Batti. Os mais queridos têm nome, e ele os apresenta tomando-os na palma da mão. Alguns têm rosto ou apenas feições sugeridas, outros são pura pedra polida. Deles o dono não se separa. Estão pousados sobre os móveis e enfileirados sobre uma mesa baixa, riqueza que Batti - agora menino crescido de 77 anos - começou a descobrir na beira do Rio Taquari enquanto sua mãe lavava roupa.