Marina Manda Lembranças Q ualquer palmo de tecido pode ser precioso. Há tanto que se pode fazer com um palmo de tecido, nem que seja cos...
Marina Manda Lembranças
Sabem disso os Amish. Estive entre eles há exatos 11 anos, quando participei de um seminário sobre escritoras brasileiras na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign e, é claro, fui levada para conhecer uma dessas comunidades de cristãos anabatistas.
São mestras, as mulheres Amish, na arte do quilt, colchas de retalhos que, diferentes das nossas, são acolchoadas e pespontadas, casando diferentes estampas com os desenhos do relevo criado pelos pespontos. As mais valiosas são emendadas a mão. E que tentação suas lojas de tecido, onde as estampas estão separadas por naipes de cor e tudo pode ser vendido em mínima metragem!
Certa vez, eu também aderi aos retalhos. Havia comprado uma casa de campo e não tinha mais dinheiro algum para decorá-la. Mas tinha os restos de tantos tecidos usados para fazer vestidinhos para minhas filhas, roupas para mim, fronhas enfeitadas e guardanapos floridos. Fui medindo palmos e cortando e empilhando, até ter tantos quadrados que se transformaram em colchas, almofadas e numa toalha que cobriu a velha mesa abandonada. Ficou sendo minha casa feita em casa.
Quilts antigos estão nos museus americanos. E agora, em Paris, uma exposição lançou luz sobre trajes japoneses muito especiais feitos de retalhos azuis, os Boro.
Até o século XVII o Japão desconhecia o algodão, os ricos trajavam seda, os pobres, cânhamo. Descobrir a fresca maleabilidade daquele novo tecido foi uma febre. Os ricos se fartaram. Mas só os nobres tinham direito a qualquer cor. Os outros eram obrigados a contentar-se com o azul e os tons mais terrosos, cinza ou marrom.
O índigo foi boa solução para sair da tristeza e a tinta tinha a vantagem adicional de repelir os insetos. Usavam-se as roupas índigo até ficarem puídas, e só então se jogavam fora. Mas o que não tem serventia para uns acaba sendo útil para outros. Daquelas roupas sem uso recortavam-se as partes aproveitáveis, e os pedaços obtidos eram revendidos em todo o país . Os mais pobres usavam esses retalhos para remendar suas próprias roupas, para tirar os fios e entretecê-los nos quimonos da cânhamo tornando-os mais resistentes, mais espessos e mais quentes. Qualquer pedaço, de qualquer tamanho, era aproveitado. De remendo em remendo, somavam-se múltiplos tons de azul, desde os bem escuros aos mais desbotados, até o surgimento de um Boro ou, traduzindo, “ um traje de farrapos”.
Ao contrário dos quilts, que obedecem a um planejamento rigoroso, casando retalhos como se acostam pinceladas, os Boro não são fruto de escolha, são resultado do puro acaso ditado pela necessidade.
De geração em geração, superpondo um recorte sobre o tecido que cede, tampando um rasgão com um remendo, reforçando o ponto esgarçado, os Boros tornaram-se quase indestrutíveis,
E através dos séculos, chegaram até nós. Mas em plano bem diferente. Pois se na origem vestiam os miseráveis, agora estão nos museus. E é justo dizer que, com seus preços astronômicos, os Boro são os mais legítimos representantes daquela “arte povera” que só seria criada na década de 60, tornando-se uma categoria na história da arte.