Marina Manda Lembranças A ndei conversando mansamente com uma casa. Ela me contou de si, dos seus, das feridas do tempo nos seus ossos. ...
Marina Manda Lembranças
Bastou virar a esquina para saber que a rua havia mudado. Antes serena e somente residencial, recanto insuspeitado com suas árvores e modestos jardins, ostentava agora uma revenda de carros com toda a parafernália chamativa que esse comércio exige. Nem silêncio mais, nem penumbra.
A casa também havia mudado. O muro baixinho ao tempo em que a conheci, havia ganho uma primeira fileira de grades, alteada depois por uma segunda, testemunho do crescer da violência urbana ao longo dos anos.
Era, quando entrei nela pela primeira vez, a casa acolhedora de uma família grande e calorosa, como sabem ser as famílias de origem libanesa. Pai, mãe, e os irmãos e irmã da minha amiga me acolheram com abraços e comida, café e conversa, doces e sorrisos. Acabamos a tarde na copa, ao redor de mais xícaras e pratos.
Ponhamos alguns anos entre essa primeira visita e a segunda, que conservo na memória e que voltou intacta ao entrar outra vez na casa em recente fim de semana. Revejo a cena em movimento e, ainda assim, fixa como um fotograma. Eu estou de pé naquela mesma copa clara, a mãe da minha amiga entra lentamente, arrastando os chinelos. Está doente de Alzheimer, vem com uma acompanhante. Não quer comer. E, de pé diante dela, a minha amiga que a mãe não reconhece começa a lhe dar comida docemente, de colher. Os sons e a alegria da casa se foram, a cena que guardo é quase muda.
Mais alguns anos, e fui visitar o pai, agora viúvo e sozinho na casa porque os filhos, crescidos, haviam tomado cada qual seu rumo. Tinha muita idade e vinha de sofrer um assalto, ladrão armado entrando na casa e fazendo exigências. Falou do fato sem nenhuma animosidade, com a mesma doçura e elegância com que pautava a vida. Não era mais tempo de açúcares e elaboradas comidas árabes, mas o tempo da generosidade continuava intacto, e ele não deixaria de me oferecer alguma coisa. Embora fosse cedo, tomamos uísque.
Depois que o pai se foi, a casa continuou sendo da família. Ninguém mais mora nela. Uma caseira limpa, um filho se hospeda em certos dias da semana, os outros, eventualmente. Tudo está no mesmo lugar em que foi deixado.
E porque eu tinha um evento na cidade, generosamente como havia-me recebido várias vezes, minha amiga quis me abrigar. Ofereceu-me a suíte, a cama de muitos cobertores.
E mais uma vez sentei à mesa na copa, toalha e pratos brancos, luz clara, escovão atrás da porta como a mãe exigia para garantir a limpeza. Havia um bolo, uma trança confeitada debaixo de um guardanapo, e café perfumava o ambiente. Quase como antes. Mas, sentados ao redor, estávamos mais velhos.
À noite, no quarto que conserva sobre os móveis a coleção de objetos miúdos, limpos e arrumados como no passado, a casa falou de si. Na parede atrás da cama corre funda rachadura. A construção sólida, de tijolos deitados, concebida pelo patriarca para proteger a família e sua descendência ao longo de várias gerações, resistiu como pode à gravíssima inundação que atingiu a cidade há alguns anos. Mas teve que ceder, e guarda até hoje a ferida.
Passei os dedos em carícia nas beiras do corte. Depois deitei, e adormeci embalada pela voz da casa.