Marina Manda Lembranças P or cima da mesa, as representações das duas Coréias apertam as mãos, selando o acordo para a ida de uma única d...
Marina Manda Lembranças
Eu a ultrapassei, em 2005, com Affonso. Representávamos o Brasil no Festival Internacional de Poesia Pela Paz Mundial, do qual participaram 29 países. O livro comemorativo traz um poema manuscrito de cada poeta, alusivo a guerra/paz, impresso na página seguinte em caracteres Sejong (sei bem que o correto é chamá-los Hangul, mas o nome do imperador que os criou é tão mais deslizante!).
É longuíssima a viagem para Seul, o cansaço dá direito a um dia de descanso. Depois houve coquetel, jantar, discursos de praxe. E já na alvorada seguinte, levando apenas maletinha, saímos para a Coreía do Norte.
Íamos em ônibus enfileirados, rumo a um centro de estudos para monges e a um templo, ainda no Sul. Montanhas cobertas de bosques, planícies cobertas de arrozais, e algumas moradias modernas e desencontradas, uma casa normanda, um castelinho medieval, uma casinha americana, lado a lado sem preocupações estéticas.
No meio do caminho, fizemos a clássica parada para comida e banheiro.
Vendiam coisas estranhíssimas. Muitas lulas; secas, defumadas, desfiadas, penduradas no alto ou em pacotes industriais. E umas larvas gordas mergulhadas em caldo escuro e grosso num panelão borbulhante. Prudentes, nós dois comemos uma sopa de udon, o macarrão oriental.
Novas horas de ônibus e chegamos ao templo. Que delicados são os trajes dos monges! De levíssimo linho cinza engomado, com precisas pregas e amplas mangas, parecem origamis de papel de seda. Havia um sino que ecoa mesmo se um inseto pousar nele. E crianças bonitas como todas as crianças.
Discursos em coreano. E mais ônibus até a fronteira.
Atravessar é coisa de grande complexidade. Fomos advertidos em várias línguas de que não poderíamos levar celulares, livros ou material impresso, binóculos, zoom, proibido tirar fotos ou fazer anotações. A espera foi longuíssima. Fazia calor. Os da organização estavam nervosos, nunca haviam atravessado antes. Uma fila, fotos — as nossas não serviam, tivemos que pagar multa. Mais espera. E, afinal, liberados.
Os ônibus vão em marcha lenta. A zona desmilitarizada é grande. Ao longo da estrada, a intervalos regulares, soldados imóveis sob o sol, plantados como se postes.
Antes de chegar ao resort onde serão lidos os poemas, paramos para visitar um templo. Este sim, de madeira, arquitetura antiga. Mas o cheiro é novo, o templo é a reconstrução do templo que havia ali antes e que, como a aldeia, foi destruído pelos americanos na Guerra da Coréia. Templo e resort foram construídos pela Coréia do Sul com finalidade turística.
Resort enorme, dentro dos padrões ocidentais. Recebemos um kit-beleza, do qual guardo a bolsinha até hoje. Mas tínhamos só 20 minutos para uma chuveirada antes do Banquete.
Comida coreana serve-se em pratinhos. Para um banquete, são dezenas e dezenas de pratinhos diferentes. E logo, enquanto os pratinhos não paravam de chegar, começaram as leituras. Cada poeta se apresentava em sua língua. Subiam três de cada vez no tablado. A maioria deles, coreanos do Sul. Mesmo para os amantes de poesia, a noite pareceu interminável.
Mas a paz pela qual havíamos enfrentado tanta estrada, não se concretizou. No último momento, antes do Banquete, os poetas da Coréia do Norte foram proibidos de ler seus versos.