Marina Manda Lembranças D ebaixo da castanheira o chão está coberto de ouriços verdes, e eu penso nas castanhas que não terei. Caem assi...
Marina Manda Lembranças
Durante anos guardei uma castanha no bolso de um casaco. Eu a catei, nua e lustrosa, no mesmo lugar distante em que, na infância, havia catado tantas. Queria leva-la para meu irmão como se, levando a castanha, estivesse lhe levando o chão, a casa, e o doce sabor das castanhas que comíamos, cozidas, no lanche da tarde. Mas era só uma castanha, e na palma da minha mão não pareceu tão especial quando a mostrei ao meu irmão, que não se interessou. Voltei a metê-la no bolso. Só para mim continuou sendo o farfalhar da castanheira.
Olhei os ouriços pelo chão na casa de montanha em pleno carnaval, e o sentimento de inadequação me remeteu aos arrastões e à violência. Quando um jovem sai em grupo com outros jovens para celebrar sua juventude atacando pessoas indefesas, podemos ter certeza: é o solo. Suas raízes não receberam os nutrientes necessários ao pleno crescimento, a terra em que ele nasceu não lhe foi propícia.
Mudas nascem em qualquer lugar, algumas se desenvolvem, outras minguam, algumas crescem fraquinhas e serão tomadas por fungos e parasitas. Duas mudas que nascem lado a lado podem não ter o mesmo destino, uma consegue tirar o máximo do pouco que o solo lhe dá, outra contenta-se com o mínimo que recebe.
O moço abandona o estudo porque enturmar-se com os “home” tem resultado mais imediato. É o solo. A adolescente dorme de dia, enrolada em um cobertor, debaixo da marquise. É o solo. O menino pede dinheiro para a quentinha diante do banco. É o solo.
A terra que devia alimentá-los não foi adubada, faltou cuidado, não houve sustentação para a muda, ninguém providenciou esteio.
Minha castanheira não é nova, o tronco que às vezes acaricio querendo transmitir-lhe força é grosso. Ao longo dos anos foi dando mais ouriços, mas nenhum se sustenta nos ramos o tempo necessário para que haja castanhas. Fiz a medição do solo, me disseram que é ácido.
Ácido demais há de ter sido o solo em que cresceu o barraco onde Gabriela Lucília da Silva dormia num só cômodo com seus sete filhos e a avó entrevada. Ácido e sem água, porque quando a fiação que corria debaixo do telhado pegou fogo espalhando fagulhas que incendiaram cobertores e colchões, não houve como apagar as chamas. E duas das crianças morreram carbonizadas.
Quem deveria adubar a terra diz que o faz. Mas os resultados não se vêm, e cada dia despontam mais mudas, e cada dia há mais ouriços verdes no chão.
Uma castanha só, como aquela que guardei no bolso do casaco, não basta. Não fala por todas as que não tiveram oportunidade de amadurecer plenamente. E nosso chão fica cada vez mais ácido, mais seco, incapaz de alimentar as muitas mudas que poderiam dar frutos.
Como os ouriços, muitas vidas não alcançam sua plena madurez. É o solo. Crescer exige condições favoráveis. Há que adubar, cuidar.