Marina Manda Lembranças S omos todos escolhidos. Não apenas um ou outro mais querido dos deuses, não só aquele que estava no cimo do mon...
Marina Manda Lembranças
Assim como nos filmes de espionagem, deve haver uma central secreta, um imenso computador voraz que se alimenta de identidades, em que os humanos estão fichados. De repente você está numa esquina esperando o sinal abrir e a velhinha cega agarra o seu braço — mas não era cega? — para que a ajude a atravessar. Por que você, e não a moça que está a seu lado? Quem decidiu que seria você? A velhinha que não enxerga?
Ah, não me venha com essa de acaso! Você acha que foi acaso no episódio da velhinha, mas quando o meliante gritou "perdeu!" e encostou a arma na cabeça daquele seu conhecido você comentou que tinha sido por causa do carro, "quem mandou ele querer um Toyota?" e o tom era meio crítico, como se o "perdeu" tivesse sido decorrência, castigo pelo muito querer do seu amigo.
Castigo. Está aí uma clara escolha. Da central, uma ordem foi emitida e depositada na vida do seu conhecido como o garçom deposita a conta diante do frequês. O assaltante estava crente de ter gritado "perdeu!", mas o que ele de fato disse foi "hora de pagar". É isso que você acredita?
Não, também não é isso. A vida, a nossa vida, é feita o tempo inteiro de minúsculas escolhas — ditadas por quem? — que, como os pontos de uma linha, se juntam traçando nosso rumo.
Você pode ter sido o filho querido da mamãe, aquele em que, ao nascer, o pai botou o nome do seu próprio pai para marcar o seguir da dinastia da qual você, e não o seu irmão, seria o chefe de fila. Ou você foi o enjeitado, aquele que recebeu mamadeira e não peito, que foi à escola mais cedo, aquele a quem a tia pediu para levar um recado à vizinha e viu a vizinha nua trocando de roupa. Agradeceu à tia? Nem se deu conta que lhe devia essa.
Você está à espera numa repartição e um funcionário sorridente facilita a sua vida. Por que a sua, se o dia inteiro flui gente naquela repartição? Porque você é simpático, porque você é bonito, porque o funcionário quer uma gratificação? É o que você pensa. E pensando assim fica com o merecimento. Mas você pode ser feio e ser escolhido, antipático e ser escolhido, pobre e ser escolhido, porque todos são escolhidos o tempo inteiro.
Sim, às vezes é evidente, João foi escolhido para o cargo porque é mais competente. Mas quando você analisa a escolha de João para o cargo que você mesmo almejava, vê logo outras motivações além da competência. Ele vive adulando o chefe, ele é notório manipulador, usou suas amizades, pisou no pescoço de uns e outros. A escolha se apresenta então toda facetada.
Facetada ou uma, é muito mais constante do que percebemos. Não é a seleção natural das espécies feita através de filtragens e lutas. É a seleção misteriosa do indivíduo que, progressivamente, determina sua posição na grei. Sem saber, você foi selecionado pelo vírus, pelo germe, pela contaminação, pela corrente de ar. Quem determinou que o desnível da calçada estivesse à sua frente? E, se você levou um tombo, quem determinou que a pessoa que vinha logo atrás, e que portanto se safou do desnível, fosse justamente aquela pessoa e não outra? Por que não foi você a pessoa que vinha atrás, já que tantas vezes, sim, foi você?
Ou ninguém determina, ninguém escolhe, ninguém aponta o dedo?