Marina Manda Lembranças H oje, Dia Internacional da Mulher, a Espanha dá, como diz chofer de ônibus, uma “freada de arrumação”. Fui a...
Marina Manda Lembranças
Fui ao banco fazer um pagamento, a segurança era mulher. Olhei os coturnos, a arma no coldre, o volume dos seios sob o colete a prova de balas, e minha alma sorriu por dentro, segura.
Dia destes, por causa do aproximar-se da data, saiu uma foto antiga no jornal, grupo de representantes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, entregando a Ulisses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, a “ Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”. “Olha você aí”, me disse Affonso. Olhei, era. Mínimo perfil sumido entre rostos e ombros das minhas companheiras, representação exata da minha atuação naquele grande esforço que, ao longo de dois anos, reuniu e tabulou os desejos das mulheres brasileiras, até chegar à Carta.
Que emoção havia sido para mim, dois anos antes, receber o telefonema de Ruth Escobar me convidando para integrar o Conselho que acabava de nascer. Talvez não tenha sido por especial merecimento, mas em obediência ao estatuto, que exigia a presença de uma escritora.
Eu nunca havia feito parte de qualquer grupo feminista ou político. Sou, por temperamento, ave solitária que se reserva o direito de rever seus princípios e de aprender com quem pensa de maneira diferente da minha. Mas escrevia. E escrevia sobre comportamento, prevalentemente feminino. Em 85 já havia publicado dois livros sobre o tema.
No começo, em Brasília me sentia como um estranho no ninho. As outras já se conheciam, ou por serem do mesmo grupo, ou até por rivalidade. Todas sabiam quem era quem, e quais as manhas políticas de cada uma. Eu não sabia nada, conhecia pouquíssimas, e até minha terminologia era diferente. Elas tinham o jargão da militância, eu inventava minha linguagem a partir do que tinha lido nos livros.
Aos poucos, prestando uma atenção de bode na canoa, fui me ajeitando.
O Conselho sendo vinculado ao Ministério da Justiça, era ali que trabalhávamos quando havia reuniões marcadas. Niemeyer que me perdoe mas, embora belíssimas como efeito cênico, aquelas cascatas que ele projetou na fachada faziam um barulho infernal, obrigando-nos a manter as janelas fechadas em prol do entendimento. E pior foi mais tarde quando, tendo o próprio ido a Brasília e verificado que contrariando seu projeto a fachada havia sido revestida de mármore branco, exigiu que fosse descascada. Tivemos então que suportar ao longo de infinitos meses o barulho da quebração.
Fiz parte do Conselho durante quatro anos. Nem todas tínhamos o mesmo mandato, estabelecido pelo estatuto. O meu foi longo o suficiente para que eu me sentisse mais à vontade e fizesse amizades preciosas. Minha maneira de agir, menos tensa porque mais ligada à coletividade das redações do que à disputa da militância, pode ter me favorecido.
Gostei muito do contato com Ruth Escobar. Era uma mulher decidida, que parecia ter nascido para liderar. Não tinha, precisou aprender. Ela mesma me contou, como contava a todos, do seu cinto de castidade.
Casada com o dramaturgo Carlos Henrique Escobar, forjaram de comum acordo um cinto de castidade não tão castigante quando os medievais, mas igualmente indevassável. Era tipo “prova de amor, que ele destrancava ao chegar em casa.
Mas foram juntos para a França, onde ela estudou interpretação. E não só nunca mais se trancou, como contribuiu para que outras mulheres fossem donas da sua própria chave.