Marina Manda Lembranças F oi a leilão ontem o retrato de Roberto Rodrigues. Não sei quem o arrematou, mas quem o levou para casa levou m...
Marina Manda Lembranças
Dois dramas estão ligados a este rosto jovem, fixado pelo seu amigo Portinari que, igualmente jovem, partilhava com ele o ateliê. Mas podemos considerar que foram três.
O primeiro, todos conhecem, fez muito barulho na época e reverberou depois, no julgamento. No dia 26 de setembro de 1929, a jornalista Sylvia Serafim Thimbau, sentindo-se vilipendiada por uma reportagem que expunha de modo escandaloso detalhes da sua separação do marido e insinuava que ela o traía, entrou na redação do jornal “Crítica” perguntando pelo dono. Ao saber que Mario Rodrigues havia saído, sacou um revólver da bolsa e atirou em seu filho Roberto que tentava atende-la. Li em alguma parte que Roberto havia feito uma charge em que um homem acariciava as pernas da jornalista, mas nunca soube disso e não tenho como averiguar se é verdade.
A arma, Sylvia havia comprado pouco antes. Considerado o gesto como “defesa da honra”, foi inocentada.
Mario Rodrigues, esmagado pela dor e pela culpa, morreu poucos meses depois. Sua morte quase discreta pode ser considerada como segundo drama.
O terceiro durou muito mais que a vida de Roberto, e poucos o conhecem.
Anita Schmidt, irmã de Augusto Frederico Schmidt, tinha 17 anos quando se apaixonou pelo belo Roberto, artista brilhante, ilustrador do jornal do pai. Para encontrar-se com ele, Anita pulou janelas, fugiu do colégio, aproveitou as mínimas oportunidades. Mas Roberto era casado e tinha um filho pequeno – Sergio, que herdaria o retrato.
Em algum momento, os pais de Anita descobriram a relação. Escândalo familiar, interdição absoluta de qualquer contato com o jovem. Uma estrita vigilância foi estabelecida. Nunca mais eles haveriam de estar juntos. E os pais fizeram mais, impondo a Anita a proibição de pronunciar o nome amado.
Quando, pouco tempo depois, Roberto é morto, um episódio de estrema crueldade acontece. Seu irmão Augusto a convida para ir ao cinema. Somente no escuro da sala Anita saberá o porque do convite. O Jornal Falado relatava o assassinato, e o irmão queria que ela visse com seus próprios olhos.
Conheci Anita Schmidt muitíssimos anos depois, quando já era uma senhora entrada em anos com alguma dificuldade de locomoção. Ela mesma me contou sua história. Havia iniciado uma amizade telefônica com Affonso, que na época chegou a publicar uma linda crônica sobre esse amor, sem citar nomes e sem dar pistas. Além disso, Anita havia comprado dois quadros meus na galeria que me representava naquela época. E uma tarde nos convidou para que fossemos visita-la.
Morava entre Botafogo e Humaitá. Lembro do apartamento em penumbra, a noite vinha chegando. E dos móveis antigos, dos retratos. Creio que havia reproduções de desenhos de Roberto, mas não posso garantir. Acima de tudo, lembro a voz de Anita contando a sua paixão, dizendo com ternura o nome proibido, agora que podia fazê-lo, agora que os homens da sua família estavam mortos e nada mais lhe aprisionava a fala.
Naquela voz a paixão se revelava intacta, interrompida no ápice pela interdição e pela morte mas fixada para sempre, como um fotograma. Uma paixão tão intensa quanto aos 17 anos.