Marina Manda Lembranças É derrubar barricada erguida pelo tráfico, e nova barricada ser erguida. Determinação não basta para transforma...
Marina Manda Lembranças
Em 1964, pouco depois de Vila Kennedy ter sido inaugurada, fui lá. Hoje leio que o lixo se espalha por toda parte, que a Primeira Igreja Batista tem mais de 30 marcas de tiro na fachada, que não há médicos suficientes, nem educadores para todas as crianças. E a imagem que guardei daquele mesmo lugar não bate.
Era jovem jornalista e um amigo meu, engenheiro da Prefeitura me fez o convite para uma reportagem. Naquele momento considerava-se Cidade de Deus, que acabava de ser entregue à administração de um colegiado de moradores, como um acerto que Vila Kennedy duplicaria.
Tudo era novo, as casas, o arruamento, a própria vida social. As casas haviam sido dimensionadas considerando o tamanho das famílias que as ocuparias. Mas os projetos previam expansão, e o material para realiza-la seria fornecido. Tudo parecia ter sido calculado.
Conversei com moradores, sobretudo mulheres, que são mais ligadas na casa onde criarão seus filhos. Disseram-se felizes com a nova situação, sentiam-se mais respeitadas, apanhavam menos dos maridos agora que haviam saído da promiscuidade da favela, e uma casa de tijolos era conquista preciosa para tantas que haviam saído de barracos- na década de 60 as comunidades eram constituídas prevalentemente de barracos de madeira com teto de zinco.
Não vi lojas, porém. Só habitações. Nenhum boteco, nenhuma vendinha, nenhum barbeiro ou salão de beleza, por mínimos que fossem. Perguntei à equipe da administração onde trabalharia aquela gente, me disseram que estava prevista a construção de uma fábrica importante – não lembro mais qual, e não importa, porque fosse do que fosse ficou só na previsão. Haveria também um mercado, e uma grande padaria que também seriam fontes de emprego.
Naquela ocasião, duas coisas me comoveram mais ainda que o fato de tantas famílias passarem a viver de uma forma que parecia decente.
A primeira me foi dita por alguém da administração: as mulheres grávidas estavam esperando para chamar ajuda até o último momento do trabalho de parto, pelo gosto de ir de ambulância até o hospital.
A segunda eu vi: ao redor de tantas e tantas casas, os moradores, proprietários pela primeira vez, haviam demarcado o seu terreno, com pedras, cercas rústicas, arame farpado, e as mais modestas com galhos ou pedaços de pau cravados no chão e ligados por barbante – algumas, para tornar mais eloquente o barbante, traziam pedaços de plástico ou papel amarrados no meio.
O projeto era bom, o arquiteto Giuseppe Badolato se empenhou a fundo. Era o seu primeiro de habitação popular.
Mas projetos não sobrevivem à falta de manutenção, e sucumbem na ausência de continuidade. A fábrica nunca se instalou no terreno que lhe havia sido destinado. Em vez de mercados e padarias criaram-se novas linhas de ônibus, puxadinhos foram feitos desrespeitando as ampliações previstas, e um mercado paralelo de botequins e lojinhas foi se instalando ao longo das ruas. O crescimento desordenado começou a ocupar os espaços.
Hoje o Comando Militar do Leste arranca as barreiras erguidas pelo tráfico nos principais acessos da comunidade, como se ignorasse a profundidade de suas raízes. E as barreiras, mais sociais e econômicas do que de concreto e aço, voltam a crescer.