Marina Manda Lembranças B ologna é uma cidade que sempre me comove. Cheguei de manhã e, como é norma, o quarto no hotel só estaria livre...
Marina Manda Lembranças
Antes de chegar em Piazza Maggiore passo por uma violinista que toca na calçada grande, quase na rua, e toca muitíssimo bem. Bonita, dançante, provoca um pequeno engarrafamento no meio-fio, gente que mais que ouvi-la a fotografa.
E eis que estou na praça, e o coração se expande.
A primeira vez que aqui estive era adolescente e me surpreendi com a igreja de San Petronio, revestida de mármore até a metade e o resto no osso, de tijolos. Pareceu-me um homem só de calças e torso nu. Mais tarde percebi que esta duplicidade é discurso precioso sobre o esforço exigido pelo processo artístico. San Petronio levou dois séculos e meio para ser erguida e ainda assim ficou inacabada. Diante de tantas igrejas completas nos encantamos com a beleza, mas esquecemos o tempo e as mãos que foram necessários para alcança-la.
Desta vez, muitas crianças na praça, muitos cães, é dia de levar amores a passear. Por toda parte, gente trazendo na mão galhinhos de oliveira iguais àquele que a minha avó prendia na cabeceira da cama em Domingo de Ramos, para só trocá-lo no ano seguinte. Entro em San Petronio. Funda penumbra sela o espaço enorme, a altura que parece perder-se no escuro. A missa, hoje, é cantada. Ao longe, por trás e acima do altar mor, o coro eleva suas vozes amalgamadas que, na distância, rebatidas por colunas arcos e capelas, parecem ter outra natureza.
Me detenho na capela dos Reis Magos. Os afrescos pintados por Giovanni da Modena no começo do século XV foram recentemente restaurados e nos dizem como era a igreja quando toda afrescada. Demoro longamente diante daquelas imagens que, ao contar a vida do santo, nos entregam o cotidiano do seu tempo. Ao centro, um Lúcifer monstruoso está empenhado em devorar um pecador ao mesmo tempo em que defeca outro.
Saindo, passo diante de Palazzo d’Accursio, sede do governo, que abriga também a biblioteca Salaborsa. Uma biblioteca muito especial esta, que sendo dedicada sobretudo à cultura contemporânea, revela debaixo do seu piso de vidro fundações de uma basílica romana e de ruas lajeadas do século I a.c., poços do século II, e muros do século III d.c.
Lá fora, a estátua de Netuno brilha com seu bronze restaurado. Mas eu paro diante das enormes placas de mármore fixadas na parede de Palazzo d’Accursio, que trazem gravados os nomes dos que caíram, em sucessivas guerras, defendendo a cidade. São muitos, muitos nomes.
Na última guerra, Bologna sofreu com os bombardeios. Até a chegada dos aliados na primavera de 1945, foram 43. Penso na dor dos bolonheses, tão orgulhosos da sua história e da sua cidade, vendo a destruição de edifícios antiquíssimos que jamais poderiam ser recuperados. Hoje, o olhar atento percebe a diferença, por vezes bairros inteiros reconstruídos – sem tentar copiar o passado – por vezes bocadas entre um e outro prédio.
Mas alegria e esplêndida comida são patrimônio desta cidade. E porque estou nela, abro um sorriso já esfomeado e me preparo para comer como deus é servido, não sem uma taça do capitoso vinho Sangiovese.