Marina Manda Lembranças F inalmente, em Bologna, consegui visitar o Museu Morandi. Digo finalmente, porque da última vez que estive naqu...
Marina Manda Lembranças
Naquela data, só me foi dado conhecer o ateliê do artista, transferido da sua casa para Palazzo d’Accurzio. Um ateliê tão franciscano quanto o foi sua pintura. A mesa modesta forrada de papel de embrulho e, no papel, as marcas que ele fazia com o pincel para consignar uma e outra vez a disposição dos elementos de suas naturezas mortas. Sobre uma cômoda, os potes, vasos, garrafas que eu conhecia tão bem, de tantos quadros, e o pequeno buquê de rosas de seda quase sem cor. Deitados como se à espera numa espécie de vitrina, os goivos usados nas gravuras.
Minha paixão por Giorgio Morandi é antiga. Eu já estudava pintura em 1953 e, chegando dezembro, minha professora, a pintora Caterina Barattelli, me convidou para acompanha-la a São Paulo. Visitaríamos juntas a Bienal, ela teria companhia e eu receberia ensinamentos preciosos. Hoje penso que, no fundo, o que ela buscava era me alegrar, já que minha mãe havia morrido naquele mesmo ano. Pegamos um ônibus e fomos.
Morandi foi naquela Bienal a estrela maior da representação italiana. Acabou ganhando o grande prêmio de gravura. Mas eu só me interessaria por gravura bem mais tarde, e o que me seduziu foram os quadros. Aquela pintura sem espessura e sem cor, sem linhas divisórias claramente marcadas, sem detalhes, aquela pintura feita só de volumes e luz, que poderia ter sido geométrica mas não era, foi para mim uma revelação. E nunca mais vi um quadro dele sem reportar-me àquele encantamento primeiro.
Hoje, o trabalho de Morandi mora no MAMbo, o Museu de Arte Moderna de Bologna. Percorrendo as múltiplas salas, parando longamente diante de cada quadro e examinando detalhadamente as gravuras, eu me perguntei mais uma vez que determinação era aquela, que busca inesgotável movia o artista.
Giorgio Morandi morou sempre com a mãe e com suas três irmãs. Até se mudarem para a casa de Via Fondazza, pintava no quarto, dormia com o cheiro da tinta, e não sei como não se intoxicou. Saiu da Itália uma única vez, para viagem à Suiça e Alemanha onde fez duas exposições. Nunca foi a Paris. Nunca casou, assim como não casaram suas irmãs. Se penso nessa família, a vejo como um convento, ele sacerdote supremo, a pintura como religião. Mas são fantasias minhas, nada a ver com a realidade.
Na vida real, Morandi foi durante longos anos professor de gravura na Faculdade de Belas Artes, aquela mesma gravura que ele havia aprendido grandemente como autodidata, estudando nos livros as gravuras de Rembrandt. Não era um recluso, era um artista dedicado ao seu fazer.
Vi, no MAMbo, desenhos que não conhecia. Aguada de nanquim e pincel sobre papel. Uma depuração de meios tão grande, que chega quase à abstração. Manchas japonesas, insinuações de volumes. Pensei em alguns quadros de Hopper, cenas de rua em que a rua desaparece e temos somente divisão de espaços.
Sempre pintou os mesmos objetos. Poderíamos pensar que o objeto não importava, se não houvesse um vaso de vidro que ele tingiu de branco por dentro para apagar seu brilho. Tudo importava, na construção meticulosa da sua obra. Ao contrário de tantos artistas da sua época, não assinou manifestos, não deixou textos teóricos. O que ele pensava da sua arte deixou dito com a intensidade de uma pintura rupestre.