Marina Manda Lembranças N ão é sempre. Porém há dias como este, em que me bate a certeza de que a vida é um prato feito. Podemos botar u...
Marina Manda Lembranças
Até a dor de cabeça, que a gente achava pessoal, devida a estresse, canseira, descobriu-se agora ser herança familiar. Li a manchete na semana passada, nem me aprofundei na matéria, preferi não saber. E a melancolia, tão cara aos poetas românticos? Ganhou outro nome, agora chama-se depressão e também é hereditária. Recebemos a pauta da vida ainda no ventre, escrita e gravada no DNA.
E não é só o DNA, é tudo. Se você nasce no Ártico, entre os esquimós — mais moderno chama-los inuítes — a sua vida se passará no frio, será povoada de focas e ursos, a sua conversa será animada por relatos de caçadas, a sua casa cheirará a gordura e você não comerá carboidratos. Mas se você nascer no Marrocos, a temperatura da sua vida será quente, os animais serão camelos, a casa terá perfume de jasmim, e você se encharcará de chá de menta. A geografia é mão pesada na escrita da vida.
Está certo, você pode nascer em um lugar e emigrar para outro. Eu própria fui transplantada. Muitos emigram, todos os dias contingentes de migrantes se deslocam cruzando as fronteiras do mundo. Mas há os que emigram e os que ficam, os que se revoltam contra as condições impostas, e os que se adaptam sem perceber.
Ir ou ficar não é desejo pessoal, não é escolha, embora pareça. Apesar da repetição da frase “Realize seus sonhos” transformada em mantra da modernidade, nem todos têm capacidade de realização, e nem todos têm os mesmos sonhos. Aquilo que consideramos desejo pessoal, tenacidade, determinação é movido pelo temperamento, e aquilo que chamamos temperamento está inscrito no DNA.
A geografia e o DNA são os chefs responsáveis pelo prato feito. Mas há também assistentes de cozinha.
Se você nasce no andar de cima, as portas se abrem para deixar você entrar. Se nasce no andar de baixo, pode entrar nos mesmos lugares, mas terá que botar o pé na porta. Para receber os bonitos, todo entusiasmo parece pouco; para receber os feios, qualquer entusiasmo parece excessivo. O extrovertido ganha as atenções. O tímido, calado no seu canto, passa desapercebido. Aplausos para os bem dotados, reprovação para os que têm dificuldades.
Trabalhei junto a uma instituição que dava suporte a crianças carentes de quociente intelectual elevado. Professores especializados, currículo bem nutrido, leitura e contato com a arte. Sem essa instituição, o patrimônio cerebral dessas crianças não teria o alimento necessário para alcançar o seu potencial. Ou seja, elas haviam nascido com o capital certo, mas no andar e no país errados.
Não estou falando de destino. Destino tem conotação quase religiosa, a mão de um deus que tudo move, ou aquela coisa árabe do “estava escrito”. Estou falando de circunstâncias.
As circunstâncias põem a mesa. E a gente come.
Felizmente, temos a saladinha, o tempero. Mas como saber quem escolhe as folhas e quem dosa o sal? Somos nós mesmos, ou cada gesto é fruto de estruturas sobrepostas ao longo dos anos sobre as fundações que nos foram legadas?
Por sorte, na maior parte do tempo me sinto parte da cozinha, e então capricho, capricho muito para tornar o prato saboroso.