Marina Manda Lembranças F ui almoçar com duas amigas queridas, habito antigo. E depois do almoço tiramos foto. Não uma, várias, para esc...
Marina Manda Lembranças
No passado não era assim.
Ganhei um belo livro de fotografias de Chichico Alkmim e, olhando os tantos retratos que fez, noto que ninguém sorri. A vida era, então, uma atividade séria e as fotos serviam para demonstrá-lo.
Francisco Augusto Alkmim, mais conhecido como Chichico, retratou a Diamantina da primeira metade do século XX, em estúdio e ao ar livre.
Não havia nada ocasional no estúdio. Tudo era teatralizado. Um telão ao fundo colocava o modelo diante de paisagens ou de amplas escadarias e nobres reposteiros. E o fotógrafo dispunha de roupas e adereços para conferir aos clientes seu melhor aspecto.
Mas há nesses retratos uma imobilidade hierática, uma determinação de permanência que supera a fragilidade do negativo de vidro e os transforma em pedra. São rostos consistentes como os monólitos da Ilha de Páscoa.
Para isso eram feitos. Para manter viva a lembrança daquele rosto, daquela pessoa, folha pertencente a alguma árvore genealógica que seguiria farfalhando. Por isso os retratados não sorriem, pois não se sorri para o futuro desconhecido.
Hoje a foto perdeu sua sacralidade. Fotografamos tudo e a toda hora. O resultado aparece no vidro, mas não há negativo. Tudo é positivo. E sorrimos, sorrimos amplos, mostrando dentes bem tratados, num testemunho de alegria, sucesso e felicidade, que postaremos para os amigos compartilharem. Não estamos olhando o futuro, estamos sorrindo para o presente. Um presente que tenta nos obrigar à alegria.
Nas fotos de Chichico também há momentos em que todos sorriram, mas só depois de tirar a foto. Um pique-nique com violão e vaquinha ao fundo, todo mundo de terno, e boca fechada debaixo dos bigodes. Um passeio de canoa com violão, chapéu de palha, cachacinha, gravata, e lábios apertados. A família posando junta no alpendre, homens de barba, mulheres de cabelos presos, bebês no colo, um padre à frente, e seriedade. Nem na foto do casamento mostrava-se felicidade, os noivos posavam compenetrados como se focados no compromisso e não no amor.
Numa única foto foi permitido sorrir, e é possível que Chichico o tenha solicitado para agregar realismo à cena: um grupo de dez pessoas fantasiadas, como se prontas para um baile de carnaval.
Chichico não retinha borboletas, fotografava a história.
A história no livro de Chichico nos diz que os ternos eram comprados no alfaiate e que meninos trabalhavam desde cedo como aprendizes. Nos mostra que o transporte em Diamantina era feito por um cruzamento de bonde e ônibus, espécie de carro ampliado e aberto de ambos os lados, com quatro bancos, que se deslocava sobre pneus e não sobre trilhos. Nos conta que o garimpo era tão brutal ontem quanto hoje e que adolescentes trabalhavam junto com adultos na oficina de lapidação de diamantes.
Quem posou para Chichico alcançou seu objetivo, seu rosto não será apagado pelo tempo. Desde 2015, o acervo do fotógrafo está conservado no Instituto Moreira Salles.