Marina Manda Lembranças T enho três amigos de rua. Amigos talvez não seja a palavra exata, já que amizade é um sentimento a dois, feito...
Marina Manda Lembranças
Não posso nem dizer que de amizade se trata, porque de dois deles não sei nada, rigorosamente coisa alguma. Nem sei como se chamam, se têm família, onde moram. Nunca soube as suas idades.
Mas é, sim, amizade, porque me preocupo com sua sorte, observo seu estado, sorrio amplo quando os encontro. São pontos de referência que povoam meu bairro devolvendo-lhe a intimidade de antigamente.
Um deles é cadeirante. Um homem forte, a quem faltam as duas pernas, provavelmente perdidas em algum acidente de trabalho ou de vida. Eu o encontro na praça, nas manhãs de terça-feira. Não se trata de hora marcada, trata-se da feira a que ambos vamos com missões distintas, eu a de abastecer a casa, ele a de abastecer, tanto quanto possível, o bolso. Pede dinheiro a quem já está com a carteira na mão, pronto a gastar, e dar-lhe alguma moeda parece apenas justo a quem a gastaria com uma fruta ou legume.
Há tempos lhe dou minha contribuição e uma ponta de conversa. Às vezes o vejo bem, com ar saudável e limpo. Às vezes parece doente ou bêbado, sujo e meio desconectado. E de repente desaparece da feira durante muitas semanas. Então eu me inquieto, pensando que pode estar doente ou morto, sozinho, necessitado de uma ajuda que não vem.
Até que, numa terça qualquer, lá está ele de volta. "Senti a sua falta", lhe digo, alegre por vê-lo vivo. "Esteve doente?". Não, não esteve doente. Foi uma obra na rua onde mora, me diz, impedindo que ele saísse com sua cadeira de rodas. Eu me tranquilizo embora sabendo que pode ser mentira, e lhe dou minha contribuição.
A outra é uma mulher sanduíche. Que nem sempre foi uma mulher sanduíche. Começou distribuindo folhetos na calçada, uma mulher diferente, muito alta, muito clara, uma mulher-pirâmide mais consistente abaixo do que acima. Usava crocs e tinha olhos aguados, cabelos claros e modos educados. Não sorria, nem para tornar mais atraentes os folhetos que estendia.
Eu cruzava com ela com tal frequência, que passei a lhe endereçar um sorriso, depois um cumprimento. Que ela retribuía — o cumprimento, não o sorriso.
Talvez por estar cansada de se movimentar pela calçada, passou a ser mulher sanduíche espremida entre dois cartazes publicitários, e parada para permitir melhor leitura.
O tempo passou por ela levado por tantas pernas transeuntes. Em algum momento reparei que seus pés — o tanto que aparecia além dos crocs — e tornozelos estavam muito inchados. Em seguida, andou ausente do seu lugar na calçada. Quando voltei a vê-la estava sentada em um tamborete alto, embora ensanduichada. "Mau sinal", pensei, "não está se aguentando de pé. Capaz de estar doente". Mas, visivelmente, continuava precisando do dinheiro.
Pouco tempo depois, desapareceu. Nunca mais a vi, não sei o que foi feito dela. Receio o pior. E o pior pode ser muita coisa.
Minha terceira amiga de rua, é A Mulher de Azul. Dela, sei nome e biografia, embora não nos conhecessemos antes da perturbação que a levou a perambular pelas ruas de Ipanema. Um dia passei por ela, e a ouvi dizer meu nome. Não estava exatamente me chamando, estava sinalizando um reconhecimento, uma cumplicidade. Desde então, sempre paro para lhe dar um carinho. E sempre me preocupo quando, diante do seu ponto habitual, não a vejo.
No ano passado foi atropelada, quebrou o fêmur. Não voltou bem. A última vez que a encontrei estava magérrima. O que me leva, sempre que passo diante do seu apartamento, a buscar com o olhar para ver se as luzes estão acesas.