Marina Manda Lembranças H á dias em que a gente empaca em uma frase ou uma palavra. Hoje estacionei numa frase, entre tantas, da entre...
Marina Manda Lembranças
Atiq Rahimi é escritor, cineasta, emigrado do Afeganistão aos 23 anos e desde então radicado em Paris. E a frase que me abocanhou combina bem com ele, homem bonito e um pouco mais estiloso que o necessário na foto cuidadosamente posada.
A frase é a seguinte: "Sou o que me vejo ou o que é visto pelos outros?"
Eu a rodeio, e a desmembro.
Primeira parte: Sou o que me vejo?
Nunca me vi andando de costas, ou mesmo de frente, despreocupadamente. Se me vejo caminhando é através de um reflexo em vitrina ou em espelho, quando inconscientemente endireito a coluna e acerto o passo com o ondear das cadeiras. Não me vejo falando em sequência. Nunca me vi dormindo. Nunca me vi pela primeira vez, nunca me fui apresentada.
Ainda assim, ninguém me conhece tão bem quanto eu, nem mesmo meu marido. Quando escovo os dentes ou lavo o rosto que depois melhorarei a poder de maquilagem, não sou só uma mulher de rosto ensaboado ou de escova de dentes na mão. Sou essa mulher e o seu pensamento. E se o pensamento é invisível para os outros, é vívido e concreto para mim, mais aderente à minha pele do que o pó de arroz que passarei em seguida. O pensamento altera meu olhar, muda a expressão da boca, ofusca ou ilumina o rosto. Eu sou eu e meu pensamento. Que só eu vejo.
Segunda parte: ou o que é visto pelos outros?
Os outros podem me conhecer a qualquer momento, o que significa que, conhecendo-me hoje verão uma mulher de muita idade, sem ter na memória, como os meus amigos, as muitas idades de que sou feita – outro dia, uma mulher que acabava de me conhecer perguntou se eu tinha carteira de identidade porque queria ver como era meu rosto quando bem mais jovem.
Os outros me vêm quando nem me olham, o que nunca aconteceu comigo. Toda vez que me vejo é porque me procuro e me olho. Ver e olhar não são a mesma coisa.
Os outros me vêm de todos os ângulos, mas cada um me vê de um jeito. Ou, melhor dito, sou diferente para cada um. Isso porque cada um me vê através dos seus óculos pessoais, dos seus sentimentos para comigo, das lembranças em que estou inserida. Cada uma das minhas filhas vê em mim uma mãe diferente. E ninguém no mundo me vê como elas duas. Obviamente, há partes comuns. Tendo que me descrever, todos os que me conhecem diriam que tenho olhos claros, mas já houve quem dissesse que são azuis, quando na verdade são verdes.
Além do mais, algumas pessoas me vêm através do que escrevi ou escrevo, como se me olhassem por trás de uma página ou de um vidro cheio de palavras. Me vêm buscando em mim a pessoa que fantasmaram ao me ler. Mas assim como cada qual lê num texto a seu modo, os leitores lêm meu rosto e meu corpo à sua própria maneira.
A frase ganha outro sentido neste nosso momento de selfies, vídeos e postagens. Puxando o cabelo para a frente, abrindo o sorriso e fazendo pose diante do celular, queremos que os outros nos vejam como gostaríamos de ser, sempre felizes, sempre no nosso ângulo mais favorável, sempre mais belos do que realmente somos ou nos consideramos. No império da imagem, é ela que projetamos em lugar de nós mesmos, e é a ela que tentamos imitar.
Minha premissa para a frase de Atiq Rahimi, entretanto, não é a melhor.
Em vez de desmembrá-la, pequenas alterações nos levam a uma formulação mais redonda e plena: Sou a soma do que me vejo e do que é visto pelos outros.