Marina Manda Lembranças E stou voltando da Sertã. Não, não é um erro de digitação, não fui ao Sertão. Sertã é uma cidade portuguesa, da...
Marina Manda Lembranças
E o que lá fui fazer (tento escrever com sotaque)? Participar da 7º Maratona de Leitura, realizada em data mais que propícia, no dia 7 do mês 07.
Foram 24 horas ininterruptas de leitura em voz alta na Biblioteca Municipal , responsável pela iniciativa. E mais, encontros literários em “lugares improváveis “; visitação de contadores de histórias e Bibliotecas Itinerantes às aldeias circundantes; um passeio de barco no rio Sêrere, com dois escritores apresentando suas obras mais recentes; Poesia à La Carte, uma performance poética; contação de histórias; chá de palavras dançante; lançamentos de livros; um espetáculo musical; uma sessão de showcooking em modo literário; exposições; quiosques de leitura; depoimentos de escritores; e a Misticidade do Número 7, que aconteceu às 7 horas da tarde num lugar onde outrora rondavam lobos, com um poeta falando sobre o Arcano 7 do tarô.
Não fui a tudo, não fui nem à metade, porque as coisas aconteciam em lugares diferentes e em horários superpostos. Teria gostado muito de ouvir a conversa de Pilar Del Río, viúva de Saramago e diretora da Fundação que leva o nome dele, com Valter Hugo Mãe, mas os dois se apresentavam na Igreja da Misericórdia quase à mesma hora em que eu me deslocava para o local da minha própria conversa.
Que lugar encantado escolheram para mim! O Moinho das Freiras não tem freiras e tampouco vi moinhos. Mas tem um rio largo e manso que corre lá embaixo entre escarpas cobertas de pinheiros, e um túnel escavado na rocha que desemboca num caminho entre verduras levando a uma ponte antiquíssima.
À ponte não cheguei. Minha atenção foi retida por oito meninas flautistas que fizeram para mim e para o público um delicadíssimo concerto. Depois delas, quatro moças tocaram peças para saxofone. Tudo isso, acompanhado pelo som cristalino de um riacho que serpenteava ali perto e, vez por outra, por algum piado de pássaro.
Ricardo Belo de Morais, autor de dois livros sobre Fernando Pessoa, leu dois contos meus e tive a impressão de ver as palavras indo no ar com as abelhas.
Naquele ambiente isolado em plena natureza, com a música e o farfalhar da água, formou-se um clima tão íntimo que, quando comecei a falar, éramos todos amigos de infância.
Difícil foi, ao fim, desprender-se dali, deixar o encantamento.
Outros encantamentos nos esperavam. O final seria ao ar livre, no Castelo – toda cidade portuguesa que se respeite tem um castelo. Noite, mas ainda claro pois no verão escurece tarde, subimos até a severa muralha de pedras e a severíssima torre. Foi uma longa noite proveitosa.
O ator Pedro Lamares fez um recital poético, o poeta Miguel-Manso leu, e leu também Valter Hugo Mãe. Passou da meia noite, ventava no alto do Castelo sobre o monte, fazia um frio nada veranil, mas todos ficaram. Até que Ana Sofia Marçal, diretora da Biblioteca e idealizadora da Maratona , fez a fala de encerramento, e os fogos de artifício lançaram-se da torre clareando o céu agora escuro.
Que clara e limpa é Sertã! Que organizada! Só mansidão e segurança ao redor. E como é doloroso para nós brasileiros surpreender-nos com isso, como se estar em paz com a própria cidade não fosse a normalidade mas a exceção.