Marina Manda Lembranças E stão nos matando como moscas. Estão nos matando pior que moscas. Uma mosca não se mata por ódio. Ninguém o...
Marina Manda Lembranças
Uma mosca não se mata por ódio. Ninguém odeia uma mosca. Se a mosca incomoda, tenta-se afastá-la com a mão, até mais de uma vez. Ninguém persegue uma mosca. Ninguém corre atrás dela na garagem ou a puxa para dentro do elevador. Só quando a mosca insiste, é morta.
Não se mata uma mosca só porque ela é mosca. Não se menospreza uma mosca por sua condição. Não se alega, antes de matar uma mosca, que nenhuma mosca presta.
Uma mosca não se tortura. Não se arranca uma pata primeiro. Não se arrancam as asas depois. Não se joga álcool na mosca para tocar-lhe fogo. Não se recorta a mosca com lâmina. Ninguém encomenda a morte de uma mosca. Nem se dá aos cães para comer o corpo da mosca morta.
Não é preciso força física para matar uma mosca. O assassino de moscas não frequenta academias, não toma anabolizantes. Um tapa basta. Não há necessidade de socos, chutes, sucofamentos, ossos partidos, cabeça batida contra a parede, nem de arma ou faca.
Não se insulta uma mosca. Não se chama uma mosca de vagabunda. Ninguém grita “piranha!” para uma mosca. Ninguém ameaça uma mosca de morte se ela contar a alguém o que está passando. Ninguém diz a uma mosca que vai lhe tirar os filhos.
Moscas não são estupradas. Não são encontradas mortas em terrenos baldios, estranguladas com suas próprias asas. Não são obrigadas a fazer sexo quando não querem. Nem são assassinadas por isso.
Depois de matar uma mosca, ninguém diz que foi por amá-la demais.
Estão nos matando como moscas. E cada dia nos matam mais.
Em 2013, a América Latina e o Caribe registraram 1496 feminicídios. Em 2016 já eram 1.831. E isso, sem os dados brasileiros que, por vergonha ou falta de organização, não foram entregues.
Mas nós sabemos. Entre janeiro e junho deste ano, os relatos de homicídio femininos aumentaram 37,3% em relação a 2017, e os de violência sexual tiveram aumento de 16,9% — a maioria dos ataques sexuais, sobretudo a crianças, acontece na sombra, sem qualquer registro.
A cada ano, 66 mil mulheres são assassinadas no mundo.
Entre os países do mundo, ocupamos o 5º lugar em feminicídios. Matamos, em média 13 por dia. E, pelo andar da carruagem, breve subiremos no pódio.
Só nos primeiros seis meses deste ano, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência recebeu 72.839 denuncias. De homicídio a cárcere privado, passando por violência sexual e muita, muita violência física.
Estão nos matando como moscas. E os que estão ao redor não nos protegem.
Os ditados da tradição contam porque.
Quando uma mulher grita por socorro, diz-se: “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Mas uma briga de casal não é a mesma coisa que uma luta de boxe ou de MMA. Não são dois iguais se defrontando em busca de supremacia. Entre marido e mulher, o peso pluma é sempre ela que, se ninguém interferir, será fatalmente esmagada pelo peso pesado. Quem não interfere torna-se cúmplice.
Quando um marido bate na mulher, diz-se: ”Ele pode não saber porque está batendo. Mas ela sabe porque está apanhando”. E é verdade. A mulher sempre sabe porque está apanhando. Apanha porque é mulher, porque tem menos massa muscular, porque quem a espanca é um violento, e porque durante séculos a sociedade deu ao violento o direito de espancar a mulher, trancá-la em casa, controlar e cercear a sua vida. Ou, até mesmo, extingui-la.