Marina Manda Lembranças A gora me pergunto como foi possível que, há tantos anos metida com o assunto da leitura e dos livros, não sou...
Marina Manda Lembranças
BSF é uma ONG minimalista e admirável, que acampa e levanta acampamento de acordo com a necessidade. Tudo cabe na alma dos que ali trabalham e nas famosas Ideas Box, concebidas pelo designer Philippe Starck.
Essas caixas metálicas amarelas, de rodízios, medindo cerca de um metro de altura por aproximadamente um e trinta de comprimento (calculo a partir de uma foto), contém tudo o de que uma biblioteca necessita. Mesas e tamboretes dobráveis, quatro câmeras, quatro computadores, alguns tablets, um conjunto electrôgeno, jogos, e entre 400 e 450 livros em diferentes línguas. Em Palermo, na Sicília, por exemplo, atendendo a imigrados majoritariamente africanos, os livros eram em italiano, inglês, francês, bengali, árabe.
Uma Idea Box completa custa 50.000 euros. E, com algum treino, esse circo mediático pode ser montado em apenas vinte minutos.
Bibliotecas sem Fronteiras destina-se a zonas conflagradas, a situações de crise, a desenraizados. Nos últimos anos as caixas amarelas marcaram presença em áreas da Colômbia castigadas pela guerra das Farc, em um campo de refugiados da Jordânia, em Calais ou em Marselha, nas lavanderias automáticas do Bronx ou de Detroit. E agora em Palermo. Calcula-se que seus usuários sejam um milhão em todo o planeta.
O acervo não é aleatório – e penso em tantas de nossas bibliotecas que vivem somente de doações – mas calculado para a situação que as caixas amarelas vão encontrar. No caso de Palermo, para jovens que na maioria das vezes cruzaram mais de um país, enfrentaram o deserto primeiro e o Mediterrâneo depois, correram muitos riscos e passaram muitas privações, há atlas para que possam se orientar e acompanhar o próprio percurso, há livros para o aprendizado do italiano, poesia do Neruda – Neruda sempre cala fundo nos jovens- e romances, peças de teatro, contos do mundo inteiro, quadrinhos de alta qualidade e um volume dos direitos humanos.
A ideia é oferecer livros para ampliar conhecimentos, e elementos que levem os usuários a registrarem suas memórias e emoções. Em Palermo oferecia-se também um atelier de vídeo.
A pergunta que os responsáveis por BSF ouvem com frequência é: “Emigrados ou refugiados precisam realmente de uma biblioteca?”. É pergunta de quem pensa que sabe, mas desconhece o que seja uma biblioteca. E de quem pensa que sabe, mas desconhece o que sejam emigrados ou refugiados.
Uma biblioteca é o lugar onde se pode escolher aquele exato livro que diz àquele exato leitor, naquele exato momento da sua vida, as palavras-bálsamo de que ele precisa.
Emigrados ou refugiados são pessoas arrancadas, pelas circunstâncias, de sua terra/família/tradição. Estão em território alheio e sob ameaça – de expulsão, de descaso, de preconceito, de agressão. Trazem feridas na alma. E esperança.
Emigrados, refugiados, pessoas em zonas conflagradas, têm dificuldade para falar. Ou por não dominarem a língua local ou por trauma.
Mas um livro fala em silêncio. Ninguém ouve o diálogo secreto entre um livro e o seu leitor. E as palavras de um livro podem sarar feridas, e alimentar a esperança.