Marina Manda Lembranças E stou tomada de fúria e indignação pelos tempos que estamos vivendo. Talvez não tanta quanto a de Ignácio de...
Marina Manda Lembranças
Leio no jornal que Kylie Kardashian “se aproxima do seu primeiro bilhão”. Assim mesmo, seu "primeiro", pressupondo que logo haverá outros. Kylie tem 21 anos. A companhia dela, Kylie Cosmetics, fundada em 2015, foi avaliada pela “Forbes” em US$ 900 milhões. Graças à presença constante da dona nas redes sociais, o primeiro lançamento da empresa se esgotou em 30 segundos, e menos de 3 anos foram suficientes para garantir o estrondoso êxito empresarial.
Leio na cartilha de Frei Betto, “Sexo, orientação sexual e ideologia de gênero”, que mais de um bilhão de pessoas sobrevivem em pobreza extrema. “Gente que não tem certeza se vai poder comer amanhã”.
Leio na entrevista do educador Sanjit “Bunker” Roy que na Índia, “milhões de pessoas nas áreas rurais vivem com menos de um dólar por dia”.
Kylie tem 114 milhões de seguidores no Instagram. Porque ela, “enfadada” perguntou no Twitter se alguém ainda abria o Snapchat, a empresa perdeu valor de mercado equivalente a 1,3 milhão de dólares.
Li na entrevista de Khaled Hosseini, o autor de “O caçador de pipas”, que entre julho do ano passado e janeiro deste ano, em cada 18 migrantes que “em barcos apinhados de gente, sem comida, sem saber nadar, com crianças de colo, numa viagem sem volta” tentavam alcançar a Europa atravessando o Mediterrâneo, um morreu.
A miséria humana não dá trégua, enquanto 114 milhões de pessoas disputam a tapa qualquer produto da Kylie Cosmetics ou “seguem” os comentários da sua dona. E a enriquecem.
Fui ao shopping em busca de um livro que não encontrei. Mas encontrei a orquídea. Eu a vi quando passei junto a um quiosque de arranjos de flores, e parei. Ainda que modestamente colocada de lado, entre outros vasos, destacava-se por sua suprema beleza. Cor de açafrão nas pétalas, entornava sobre elas o arroxeado quase sangue do miolo, que finas rajas claras acariciavam. Tudo nela era delicadeza e força.
Inclinada, eu lhe dirigia o pensamento, agradecendo sua presença, dizendo a ela quanto me comovia sua perfeição. É certo que se houvesse um banquinho por perto, teria sentado diante dela em admiração, como nos sentamos nos museus estudando nossos quadros favoritos.
Véspera de feriado, o shopping estava cheio. As pessoas passavam sozinhas ou em grupo, cabeça voltada para as vitrinas ou abaixada sobre o celular, à procura de algo que acendesse seu desejo. Ninguém olhava para a orquídea. Tive ímpetos de gritar, atenção, está aqui a mais preciosa peça de grife, entre tantas que vocês estão admirando! E que grife! Aqui está a única ‘peça única’ de todo o shopping! A autêntica peça Haute Nature! Olhem para ela em seu momento de esplendor, destinado a acabar. É de graça, e vocês levarão para casa a visão de uma joia preciosa.
Mas teriam me achado louca. Uma orquídea, por estupenda que seja, não acrescenta poder social, não se carrega pendurada no braço visível como uma bolsa, não traz assinatura escrita em letras grandes. Uma orquídea só viraliza se for carnívora e filmada no exato momento em que tritura sua viva refeição.
O fundo do Mediterrâneo está ficando coalhado de cadáveres, não há como viver com menos de um dólar por dia, e quem não sabe se comerá amanhã adormece com fome. Mas Kylie completará em breve seu primeiro bilhão e 114 milhões de seguidores aplaudem tudo o que ela posta.