Marina Manda Lembranças O pacote chegou pelo correio, mas tinha sido anunciado. Meu querido amigo, o professor Juca Fardin havia me ...
Marina Manda Lembranças
Viajei para Divinópolis atracada com o russo. Ida e volta, durante as esperas no aeroporto, em voo, nas mais de duas horas de carro pra lá e pra cá, só fiz ler, como se tivesse me transferido para dentro do livro e fechado sobre nós a capa dura em que as caricaturas desenhadas pelo autor parecem sorrir. Ao chegar, tinha dado conta das 285 páginas. Faltavam apenas os apêndices.
Tudo me pareceu atual nesse livro escrito entre 1860 e 1862! Nenhum dos sentimentos ali descritos prescreveu. Está certo, a monarquia acabou e com ela todo o plantel da nobreza. O conceito, porém, continua em voga, transferido para gente menos elegante mas igualmente poderosa, a nobreza do dinheiro e da celebridade.
Enquanto Turguêniev se debruçava sobre o papel, escrevendo e reescrevendo seu romance para que traduzisse os novos tempos, a Russia vivia momentos conturbados. O tsar havia decretado o fim da escravidão da gleba e, paralelamente, organizações políticas secretas realizavam atentados violentos em combate à autocracia.
Há sempre, em alguma parte do mundo, momentos conturbados em curso, deixando em suspenso as pessoas que o vivem. Nisso reside a atemporalidade desse livro. Lendo-o era inevitável para mim tecer comparações com o nosso momento atual, tão conturbado, que de nada nos adianta interrogar o futuro.
Há uma personagem aparentemente central no livro — aparentemente, porque o verdadeiro suporte do romance é a delicada tessitura dos sentimentos que ligam e que separam personagens e classes sociais — esta personagem é o nihilista Bazárov.
Turguêniev, nos afirma Rubens Figueiredo no apêndice, não sabia o que pensar dele. “Meus sentimentos em relação a Bazárov, meus sentimentos pessoais, eram de natureza confusa (só Deus sabe se eu o amava ou não”).
O autor está indeciso sobre seus sentimentos, porque a personagem que criou é o seu, exato, oposto. Henry James, num terceiro apêndice ao livro, descreve Turguêniev como “o mais acessível, o mais tratável, o menos perigoso de todos os homens de gênio que tive a sorte de conhecer”. Era simples, natural, modesto, destituído de pretensão pessoal, e interessava-se por tudo. “Não tinha nenhuma partícula de vaidade; nem sombra do ar de quem tem um papel a representar...”.
Ora, o nihilista Bazárov, não acredita em nada, nas instituições, nos políticos, nos costumes. Não acredita no propósito da vida e sequer no amor. Não gosta, e sente prazer em não gostar. Mas é dono da verdade e despreza quem não pensa como ele. A bem dizer, despreza quase todos os com que se relaciona e, acima de todos, despreza a inteligência das mulheres. Representa constantemente o seu papel de descrente, mesmo com a mulher por quem acaba se apaixonando.
Mas um autor não precisa amar as suas personagens. Precisa, isso sim, conhece-las. E Turguêniev, observador meticuloso, escreveu:” nunca tentei criar um personagem sem ter, para me inspirar, não uma ideia, mas uma pessoa viva”.
Certamente por isso, a primorosa edição da Cosacnaify não traz título na capa, apenas a série de caricaturas em que o autor buscava reter a vida, além da ideia.